Em período de crise braba, com choro e ranger de dentes por quase todos os lados, nada como acompanhar, mesmo de longe, o presidente Lula, a primeira-dama Marisa Letícia, e ministros da comitiva brasileira - Dilma Rousseff e Nelson Jobim à frente -, na Itália deste final de outono europeu. Três dias flutuando por palácios, praças, lojas e fontes. Uma atmosfera de "A Doce Vida", o maravilhoso filme de Federico Fellini que retrata um tempo de diversão sem culpas e sem remorsos na Roma dos anos 60.
Neste sábado, ao participar da Cúpula do G-20, na Washington da recessão de 2008, é possível que Lula e seus acompanhantes caiam finalmente na real. Mas é melhor não apostar nisso. Com George W. Bush em seu melancólico fim de governo, o recém-eleito Barack Hussein Obama bem poderia atrair atenções e criar interesse para ajudar a salvar um debate fadado ao fastio. Mas Obama fica em Chigago no fim-de-semana, prefere aguardar o resultado da reunião de chefes de estado das grandes potencias e países emergentes ao lado de Michelle e das duas filhas. Deixa o campo livre para Lula seguir deitando e rolando.
"Espaço aberto é espaço ocupado", asseguram respeitáveis analistas da política e das intricadas relações da diplomacia e do poder. Os dias passados na Itália foram de glória: encontro com os jogadores brasileiros do Milan, animado pelo hilário primeiro ministro Sílvio Berlusconi; compras do ministro da Defesa nas lojas mais badaladas da cidade; a unção do líder à sua sucessão, imposta de público sobre a cabeça da ministra Dilma, piedosamente coberta por um véu na casa de São Pedro; conselhos ao Papa Bento XVI, depois do beija-mão de dona Marisa na despedida do Vaticano.
Olhando bem, foi um espetáculo quase completo! O presidente e seus acompanhantes mostraram desembaraço, confiança, além de reservas de sobra de gás para queimar nos Estados Unidos, no fim do périplo. Mesmo com o país das oportunidades, das celebridades, da prosperidade e do consumo de braços com os sinais iniciais da volta do mais temido e amargo pesadelo para um americano do norte em qualquer época: a recessão.
Em Nova Iorque, a TV Globo apresenta imagem constrangedoras da fila quilométrica de desempregados. Centenas de homens e mulheres em trajes finos adquiridos nas lojas de grifes de Manhattan. Gente jovem, de meia idade, idosos que mofam horas na fila, na esperança de conseguir uma das vagas oferecidas por um hotel. "Isto é mais do que eu posso suportar em minha idade", diz a senhora de mais de 70 anos, ao desistir da fila.
Mesmo no cenário imponente, pleno de modernidade e tecnologia, impossível não sentir um frio no estômago diante da cena. Recordação inevitável das legiões humanas na Grande Depressão, que atravessavam os Estados Unidos de 1929, em busca da esperança ilusória dos laranjais e parreirais sem fim da Califórnia. Tudo descrito em "As Vinhas da Ira", o magnífico romance de John Steinbeck, adaptado anos depois para o cinema por John Ford, cujas imagens se transformaram no pungente e implacável retrato de um país e de uma época.
A Itália visitada esta semana pelo presidente Lula e seu séqüito, lembra um filme mais recente, mas não menos significativo. "La Dolce Vitta" também vislumbra uma cidade, um país e um povo em tempo de crise. O olhar de gênio de Fellini antecipa a era de transformação que se aproxima, enquanto a Itália, no meio do caos, prepara-se para receber os novos tempos embriagada do otimismo mais louco. A cena de abertura, aliás, resume a idéia central do filme e o eterno dilema italiano desde "O Leopardo", de Lampedusa: aqui é o lugar onde tudo muda para que tudo permaneça como está.
Uma gigantesca estátua de Cristo amarrada em cordas sobrevoa Roma, conduzida por um helicóptero que leva também repórteres de publicações sensacionalistas e o fotógrafo "paparazzo", que flagra moças que tomam banho de sol e se divertem na cobertura de prédio luxuoso. No alto e no solo, os sinais das mudanças dos anos 60: a velocidade, a americanização dos costumes, carrões que transportam mulheres esculturais, a busca da celebridade, as festas intermináveis. O sagrado e o profano, lado a lado, como em Salvador, a cidade da Bahia, " Roma Negra" naquele tempo.
Reminiscências de tudo isso ainda permanecem na Cidade Eterna percorrida pelo presidente do Brasil e sua comitiva. A começar pela Fontana di Trevi, do banho inesquecível de Anita Ekberg e Marcello Mastroianni, e a loja da Salvatore Ferragano, onde o ministro da Defesa, Nelson Jobim, se esbaldou nas compras de produtos finos.
Neste ambiente de sonho, embriagador, o presidente Lula, e o primeiro ministro italiano, Silvio Berlusconi, disseram não fazer fé na reunião deste sábado nos EUA. O líder do Brasil é mais franco: "Será um primeiro passo na direção da reforma do sistema econômico para fazer frente à crise atual. Mas o encontro do G-20 não valera muito, porque ainda não temos um diagnóstico perfeito das causas das crises". Olhando bem, faz sentido.
Valeu a viagem!
Vitor Hugo Soares é jornalista - E-mail:vitors.h@iuol.com.br