Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 13, 2008

A tormenta financeira é menos feia do que parece

As defesas da supereconomia

O Brasil resiste de maneira inédita aos choques
da crise externa e festeja o aumento do crescimento
e o recorde nos investimentos


Giuliano Guandalini

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Desde que eclodiu, há um ano, a crise dos mercados financeiros freou a atividade econômica nos países ricos e contagiou as bolsas em todo o planeta. A despeito dessa tormenta, no entanto, a economia brasileira segue inabalável. De acordo com números divulgados na semana passada, o PIB (produto interno bruto, soma de todas as mercadorias e serviços produzidos pelo país) cresceu num ritmo forte de 6,1% no segundo trimestre deste ano. O país, assim, deve completar dois anos consecutivos com aumento do PIB acima de 5%, o que não ocorria havia mais de duas décadas. O que é melhor: o crescimento foi puxado por um avanço recorde de 16,2% nos investimentos produtivos, ou seja, está-se diante de um crescimento sadio e, ao que tudo indica, sustentável.

Como o país prospera em meio à turbulência dos mercados mundiais? São várias as razões. Uma delas, como mostra a Carta ao Leitor desta edição, é a ascensão de 20 milhões de novos consumidores no Brasil. Esse contingente veio das classes D e E e atingiu os níveis de consumo de classe média, mesmo que ainda nos primeiros degraus. Eles não emergiram por motivos fortuitos. O país teve de arrumar a casa antes. Desde 1994, a economia foi se cercando de escudos protetores que lhe permitem hoje navegar com mais segurança e capacidade em momentos de tormenta externa, como agora. Pois é essa imunidade ao contágio externo, ainda que imperfeita e não testada em situações de gravidade máxima, que permite ao Brasil comemorar recordes de investimentos e de consumo privado, a despeito da crise nas bolsas do mundo – com reflexo no nosso próprio mercado acionário. Alguns desses escudos são amplamente conhecidos. Entre eles, a manutenção de políticas econômicas previsíveis e responsáveis há mais de uma década. O país beneficia-se do fato de ter aderido ao que se faz de mais sensato no mundo, em termos de condução da política econômica.

Ricardo Stuckert/PR

O AÇÚCAR DO PRÉ-SAL
O presidente Lula e a ministra Dilma dão largada à exploração das novas reservas de petróleo: mais dólares para o país

O pilar dessa política é a defesa constante do poder de compra da moeda, por meio do combate à inflação e do controle do déficit público. Outro escudo fundamental, menos conhecido, porém, dá a maleabilidade necessária para que a economia possa se auto-ajustar diante das intempéries. Esse mecanismo é o câmbio flexível. Quando os preços do petróleo e de outras commodities começaram a subir rapidamente nos mercados internacionais, o dólar perdeu valor no Brasil. A queda da moeda americana torna os produtos importados mais baratos, contribuindo, assim, para o combate à inflação. Por outro lado, quando as importações começam a crescer de maneira excessiva, o dólar volta a ganhar valor, desestimulando um avanço ainda maior das compras externas e incentivando as exportações. Esse mecanismo de auto-ajuste permitiu ao país livrar-se de seu histórico desequilíbrio nas contas externas. Favorecido pela demanda internacional por alimentos e minérios – e beneficiado pela sua competência na produção dessas mercadorias –, o país tem batido recordes atrás de recordes em suas exportações. Os dólares obtidos pela balança comercial foram guardados e depositados nas reservas internacionais. Essa poupança externa supera atualmente 200 bilhões de dólares. São recursos suficientes para honrar todos os débitos internacionais do país e, graças a eles, o Brasil deixou de ser devedor para ser credor externo. Contra essa couraça protetora, o ataque dos especuladores tem poder de fogo reduzido.

Nos números do PIB divulgados na semana passada, dois setores aparecem com destaque: o financeiro e o imobiliário. Diz o economista Sérgio Vale, da consultoria MB Associados: "Ambos refletem os avanços institucionais e legais alcançados nos últimos vinte anos e que, agora, começam a dar resultados". O setor imobiliário é um bom exemplo disso. Antigamente, os bancos enfrentavam obstáculos para reassumir imóveis de clientes inadimplentes. A lei anterior, supostamente destinada a proteger os mutuários, fez com que, na prática, os bancos parassem de financiar a compra de residências. Com o fim desse obstáculo e a diminuição nas taxas de juros, os empréstimos deslancharam – houve um crescimento de 59% no primeiro semestre do ano. Houve ainda outras reformas importantes, ainda que executadas pela metade, que também ajudaram no aumento da produtividade da economia. "Sem a abertura econômica e as privatizações, não estaríamos nesse novo patamar de crescimento", conclui Vale.

Leo Feltran

PILAR DO MERCADO
Construção residencial no litoral de São Paulo: em crise nos EUA, os setores imobiliário e de crédito lideram o crescimento do PIB brasileiro

Uma reportagem nesta edição de VEJA mostra que, graças à economia aberta e à estabilidade, o Chile terá padrão de renda de Primeiro Mundo em 2020. O Brasil, que só deverá chegar lá em 35 anos, poderá encurtar esse tempo pela metade se mantiver o ritmo de elevação da riqueza verificado no primeiro semestre. Isso é possível? Sim, desde que o país enfrente seus fantasmas remanescentes. Segundo o economista Alexandre Marinis, diretor da consultoria Mosaico Economia e Política, o gigantismo do estado ainda joga contra. "Os investimentos privados deveriam se somar àqueles feitos pelo setor público, mas não é o que vem ocorrendo. O governo tem privilegiado outras despesas, como a contratação de servidores e o aumento salarial do funcionalismo. Deveríamos ter o estado parceiro do crescimento, mas ele tem sido um obstáculo." A redução dos gastos da manutenção da máquina pública seria essencial para ajudar a conter a inflação e, assim, evitar que o Banco Central (BC) suba ainda mais a taxa básica de juros, a Selic. "Como o governo não faz sua parte, o BC terá de elevar os juros um pouco mais, e assim conter o excesso de demanda", afirma o economista Alexandre Schwartsman (leia no quadro abaixo).

Nesse ambiente interno favorável, de forte crescimento e retomada dos investimentos, a queda recente na Bovespa deve ser entendida, fundamentalmente, como um fenômeno importado, decorrente da crise no centro do capitalismo mundial e de um reequilíbrio no valor dos investimentos. Os bancos e fundos de investimento europeus e americanos têm registrado perdas bilionárias. Para taparem o rombo em sua contabilidade, essas instituições financeiras vendem parte dos ativos lucrativos de que dispõem – incluídas aí as ações das empresas brasileiras. Além disso, como observa o economista Luiz Carlos Mendonça de Barros, as commodities haviam se valorizado excessivamente, o que inflou o preço das ações de empresas brasileiras do setor. Agora esse fenômeno passa por um ajuste. Afirma Mendonça de Barros: "Vivemos hoje a ruptura de uma nova bolha, representada pelas aplicações financeiras em ações de países emergentes, entre eles o Brasil". Na avaliação de Alexandre Póvoa, diretor da firma de investimentos Modal Asset Management, após a queda dos últimos dias, há muitas ações com preços atraentes. "Mas o investidor brasileiro, sozinho, não consegue sustentar a bolsa", diz Póvoa. "Enquanto os estrangeiros não voltarem a comprar ações brasileiras, dificilmente a Bovespa voltará ao pico de alta registrado em maio passado." E quando isso ocorrerá? Ninguém sabe ao certo.

Pick Imagem

INFERNO BUROCRÁTICO
Funcionários da área tributária da fábrica de pães Wickbold: a dura tarefa de lidar com o pagamento de dezessete tributos

Olhando à frente, o Brasil conta com uma grande oportunidade (as reservas de petróleo do pré-sal), um desafio (retomar as reformas) e uma vulnerabilidade (a gastança do setor público). Na semana passada, a Petrobras informou que o Campo de Iara, na Bacia de Santos, possui até 4 bilhões de barris de petróleo. Somados aos estimados 8 bilhões de Tupi, apenas essas duas jazidas guardam o potencial de praticamente dobrar as reservas conhecidas do país – hoje em 13 bilhões. A expectativa é que, a partir de 2012, o país passe a ser um grande exportador de petróleo e derivados. Isso é importante porque reforçará ainda mais as reservas em moeda forte do país, ao mesmo tempo em que atrairá uma nova onda de investimentos – isso, lógico, desde que a exploração seja feita de maneira inteligente e transparente. O grande desafio para o Brasil nos próximos anos será acelerar as reformas, como a melhora na educação e a racionalização do sistema tributário. Esses avanços são necessários para assegurar os ganhos de produtividade.

A grande vulnerabilidade que paira sobre a economia nacional é a gastança pública. Se, de um lado, o país soube poupar os dólares obtidos com o aumento das exportações, por outro gastou cada centavo arrecadado a mais com o aumento da carga tributária ocorrido na última década. O governo federal tem concedido ao funcionalismo os maiores reajustes reais de que se tem notícia na história republicana, além de ter contratado mais de 200 000 servidores nos últimos cinco anos. É uma conta pesada, que será deixada para o próximo governo. O avanço dessas despesas impede que a dívida pública diminua mais rápido, o que permitiria juros mais baixos, e exige que a arrecadação tributária permaneça em alta. Essa receita venenosa pode não ser suficiente para aniquilar a pujança econômica – nem mesmo nesse momento de elevado pessimismo internacional –, mas impede o país de acelerar a velocidade e alçar vôos mais altos, estreitando mais rapidamente o fosso que ainda o separa das nações desenvolvidas.

Quem ganha sabe a hora

Moacyr Lopes Júnior/Folha Imagem
PREGÃO DA BOLSA
A perda ou o ganho estão no fim da curva

Para muitos brasileiros, a bolsa de valores ainda é uma festa à qual a maioria só é convidada para pagar a conta e limpar o salão. Foi assim na primeira grande euforia no começo dos anos 70, quando as bolsas pareciam distribuir as riquezas do milagre econômico, mas serviram mesmo para socializar as perdas. Não é mais assim. Investir em ações no Brasil oferece hoje os mesmos riscos e prêmios dos grandes mercados de papel dos países avançados. Lá, como aqui, investir em ações exige conhecimento, habilidades de jogador e disposição para enfrentar riscos.

A HORA DE ENTRAR

Os dirigentes das bolsas gostam de lamentar o fato de seu negócio ser o único que afasta os clientes nos momentos de grandes liquidações – ou seja, quando as ações estão baratas. É uma meia verdade. O cliente só foge quando acha que as ações em liquidação tendem a valer ainda menos. Mas o ponto de entrada é decisivo para definir ganho ou perda com ações. No caso do índice Bovespa:

• Quem entrou na bolsa no pico da valorização, ocorrido em maio de 2007, estava perdendo 29% do investimento na sexta-feira passada.

• Quem comprou papéis em setembro de 2007, ou seja, há um ano, perdia apenas 3% na semana passada.

• Quem entrou na Bovespa há dois anos, em setembro de 2006, ainda ganhava 45% na semana passada.

A HORA DE SAIR

Seja um veterano ou um novato, um gênio das finanças ou um analfabeto financeiro, a única maneira de ganhar nas bolsas é vender as ações por um preço maior do que aquele pago por elas.

• Quem tem sangue-frio e confia que o pico de valorização ainda não chegou segura as ações e pode lucrar mais. Se avaliar erradamente, venderá na curva descendente e ganhará menos.

• Os maiores ganhadores são aqueles que estabelecem para si mesmos gatilhos de compra e venda e obedecem fielmente às suas diretrizes. Por exemplo: um investidor da Bovespa que decida vender sempre que o índice passar de 53 000 pontos e comprar sempre que o índice baixar a 45 000 pontos poderá não fazer fortuna instantânea, mas terá menos probabilidade de perder grandes somas.

Sinais trocados

Alexandre Schwartsman

Pisco Del Gaiso/Valor/Folha Imagem
AJUSTE FINO
Para Schwartsman, o desafio do Brasil está em calibrar o crescimento da demanda doméstica

Não há contradição entre o movimento de queda das ações e o cenário de crescimento acelerado do PIB. Essa é a opinião de Alexandre Schwartsman, economista-chefe para a América Latina do Banco Santander, doutor pela Universidade da Califórnia, em Berkeley, e ex-diretor de assuntos internacionais do Banco Central. Segundo ele, a bolsa reflete diretamente a queda nos preços de commodities e não pode ser tomada como um retrato fiel da economia brasileira. Abaixo, suas opiniões sobre temas atuais do noticiário econômico.

"As economias brasileira e americana passam por momentos distintos. Nos EUA, os setores financeiro e imobiliário têm uma relação íntima. Já no Brasil, até pouco tempo eles queriam distância um do outro"

O PIB E A BOLSA
No Brasil, a bolsa de valores não é uma amostra representativa da economia nacional. Por isso, as ações podem estar em baixa mesmo diante de um cenário de crescimento acelerado do PIB. Apenas duas empresas (Petrobras e Vale) compõem cerca de 40% do índice Bovespa. Mesmo que essas empresas sejam muito importantes para o país, certamente não representam 40% da economia nacional – nem mesmo da indústria brasileira. Daí os sinais trocados entre a bolsa e o PIB. As commodities são importantes para as exportações, mas muito menos para uma economia relativamente fechada como a brasileira, na qual as exportações representam apenas 14% do PIB.

RISCO DE CONTÁGIO
Existem canais pelos quais a crise internacional pode nos afetar. O principal deles seria uma queda muito acentuada nos preços das commodities. Elas têm peso relativamente pequeno para uma economia fechada como a brasileira, mas são um fator crucial para o desempenho do setor exportador. O crescimento das exportações, amparado quase que integralmente pelo aumento dos preços das commodities, permite que o país possa importar quantidades crescentes de bens sem que haja maiores desequilíbrios em suas contas externas.

VULNERABILIDADE
Se as cotações de commodities caírem significativamente ainda mais, as exportações perderão fôlego – pelo menos inicialmente –, o que piora as perspectivas das contas externas e reduz o poder de importação das empresas. Como combater esse cenário? Visto por outra ótica, esse mesmo fenômeno se traduz na necessidade de reduzir o crescimento da demanda doméstica com relação ao PIB. Essa é, na minha opinião, a principal vulnerabilidade que enfrentamos hoje. Há duas maneiras de conter a demanda: elevar os juros e reduzir os gastos do governo.

BOLHA IMOBILIÁRIA
Curiosamente, os setores que mais crescem no Brasil, o crédito e a construção civil, são os dois mais atingidos nos EUA. Para alguns, isso é um sinal de que o Brasil poderá sofrer algo do tipo. Eu não creio nisso. A economia americana e a brasileira passam por momentos bastante distintos. Nos Estados Unidos, o setor financeiro e o imobiliário têm, há tempos, uma relação íntima. Não foi por acaso que toda essa onda de investimentos em instrumentos financeiros exóticos, que deram origem à crise dos subprimes, foi particularmente intensa no setor imobiliário. No Brasil, em contraste, até pouco tempo atrás o setor financeiro queria distância do mercado imobiliário. Por razões legais, entre elas a impossibilidade de executar a garantia de um imóvel que seja a única residência da família, os bancos simplesmente não queriam saber desse negócio. Só com a mudança do marco legal, que deixou o financiamento de imóveis mais parecido com o de automóveis, é que os bancos voltaram a emprestar para o setor. Resultado: esse segmento cresce como nunca, graças à disponibilidade de crédito. Como os bancos brasileiros começaram agora esse processo, ainda estão emprestando apenas para o "prime" do "prime" – ou seja, os melhores devedores. Isso deve continuar por longo tempo, uma vez que o crédito imobiliário é muito baixo no Brasil.

CRISE MUNDIAL
As visões sobre o tamanho da crise externa variam. Os mais pessimistas a comparam com a Grande Depressão dos anos 30. Acho que a melhor comparação a ser feita se refere ao seu impacto sobre o setor financeiro e ao risco de que alguns gigantes desse setor amanheçam de barriga para cima. Aliás, Ben Bernanke, presidente do Federal Reserve (banco central americano) e um dos maiores especialistas na Grande Depressão, conhece bem o assunto e sabe que quebras bancárias como as observadas na década de 30 devem ser evitadas. Embora muitos prefiram focar apenas na quebra da bolsa em 1929 como o fator determinante para o desencadeamento do fenômeno, é bom lembrar que foi a rápida contração do crédito devido à crise bancária o principal fator que transformou uma recessão na Grande Depressão. Nesse sentido, sim, a crise parece ser a mais grave desde aquela dos anos 30. Mas isso não equivale a dizer que ela terá efeitos tão severos quanto os da Grande Depressão.

Com reportagem de Cíntia Borsato e Kalleo Coura


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