Será que, realmente, "o caldeirão étnico em que foi formado o povo brasileiro" não passou de um monumental equívoco antropológico? Afinal, a atual política de demarcação é a negação do que há séculos se faz no País para possibilitar à população indígena condições de mobilidade social e integração étnica. A questão é situada com acuidade pelo articulista ao descrever as expectativas conflitantes de duas índias da Raposa Serra do Sol. Uma, a advogada uapixana Joênia, casada com um "mestiço" e residente na cidade de Boa Vista, primeira indígena a advogar no STF - "num testemunho eloqüente de mobilidade social e integração à sociedade nacional" -, defendeu com ardor a expulsão dos não-índios; outra, a índia macuxi Elielva, acompanhava o julgamento ao lado de outras mulheres igualmente temerosas de terem a "família desfeita", caso os agricultores e trabalhadores da região tivessem que abandonar as terras das quais tiram sustento há muitos anos. Como fazem as índias desde que Bartira se casou com João Ramalho, no século 16, Elielva desposara um camponês egresso do Tocantins e temia que este fosse removido da Raposa Serra do Sol, como muitos outros já foram.
Esse argumento desfaz a impressão, que muitos possam ter, de que o conflito em Roraima é apenas uma disputa de terras entre índios e não-índios. Os indígenas, miscigenados ou aculturados, estão em ambos os lados. E, se é inadmissível que as tribos indígenas não tenham suas reservas, nas quais possam manter sua cultura e sistema de vida, também agride o bom senso dizer que as cinco tribos da Raposa Serra do Sol precisam ocupar uma faixa contínua de 1,7 milhão de hectares. A demarcação daquelas terras, como foi feita, exclui (por extrusão), além dos produtores rurais "vindos de fora", índios que de alguma forma se integraram ao ecúmeno nacional.
Não é, portanto, apenas o fato de a reserva de Roraima estabelecer-se em faixa contínua na fronteira que suscita a discussão sobre a segurança de nossa soberania - na medida em que indígenas ocupando terras contíguas às "suas", mas localizadas em base territorial de outro país, podem assumir identidade nacional diversa da brasileira. A própria extrusão de brasileiros "não-índios" da região desqualifica noções sobre a identidade nacional.
Não bastasse a situação de grave conflito, tendendo a tornar-se explosiva, criada em Roraima, agora a Funai estabelece como prioridade "demarcatória" Mato Grosso do Sul, onde desenvolve estudos sobre cerca de 10 milhões de hectares de áreas férteis, em 26 municípios, por sinal as mais produtivas do Estado e onde se encontram 30% dos seus estabelecimentos agropecuários. A região, que detém 61% da produção de soja do Estado - o maior produtor de soja do País - numa área cultivada de 1,7 milhão de hectares, aposta agora no cultivo da cana-de-açúcar para a produção de etanol.
É claro que o que acontece em Roraima só pode deixar os agricultores de Mato Grosso do Sul muito preocupados. Como essa região concentra aldeias de índios guaranis-caiovás e como a Funai tem até junho de 2009 para apresentar os relatórios de identificação e delimitação das novas "terras indígenas", aqueles produtores rurais só podem ficar em estado de pânico, quando vêem o que está acontecendo em Roraima. Esperemos que a decisão do Supremo ilumine da melhor forma a questão que, acima das demarcações, implica afirmar direitos da identidade nacional - em Roraima, em Mato Grosso do Sul e onde mais seja no território brasileiro.