Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, setembro 22, 2008

Grampos, medo e liberdade - Celso Lafer


O Estado de S Paulo

Celso Lafer

Montesquieu introduziu na teoria política a funcionalidade lógica da divisão dos Poderes entre um Executivo, um Legislativo e um Judiciário. Deste modo indicou que o poder não é, necessariamente, indivisível e monocrático e apontou que a tripartição favorece a vida de uma sociedade livre porque nenhum dos Poderes se estende sem limites, porque é contido pelos demais.

No trato do escândalo dos grampos e das escutas telefônicas ilegais promovidas pela Polícia Federal e pela Abin, órgãos que estão no âmbito do Executivo, uma contenção em prol de uma sociedade livre está sendo objeto da atuação do Judiciário, por iniciativa do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e igualmente do Legislativo. Quais são os fundamentos dessa atuação?

Montesquieu também inovou a teoria política ao fazer uma distinção entre a natureza de um governo e o seu princípio. A natureza é o que faz um governo ser o que é, mas é o seu princípio que explica sua ação e seu movimento. A virtude, que é o amor à igualdade, move uma República; a honra, que é o gosto da distinção, move a monarquia. Já o princípio que move o despotismo é o medo: o medo do déspota em relação aos seus súditos, o medo dos súditos em relação ao déspota. Trata-se, assim, de um estado de coisas que se caracteriza pelo medo generalizado de todos em relação a todos.

O medo, dizia Guimarães Rosa, "é uma pressa que vem de todos os lados, uma pressa sem caminho". No século 19, a hora e a vez do moderno medo político teve sua base na polícia secreta. Esta foi implantada por Fouché, que agregou à parte visível da polícia a sua face secreta, lastreada numa rede de espiões e delatores que, na promiscuidade da sombra, coletava informações sobre súditos para assegurar o mando de Napoleão. Deste modo o governante controlava o que se passava, vendo sem ser visto.

No século 20 os regimes totalitários da Alemanha nazista e da URSS stalinista promoveram, para alcançar a dominação total, o ineditismo da ubiqüidade do medo. Isso exigiu alcançar a vida privada das pessoas, estancar a espontaneidade e considerar todos objetivamente suspeitos, independentemente das condutas individuais. Na implantação da ubiqüidade do medo a atuação da polícia secreta foi decisiva para transformar a sociedade num sistema de permanente e onipresente espionagem.

No exercício deste tipo de dominação, como dizia Hannah Arendt, "o verdadeiro poder começa onde o segredo começa". Por isso, é pela força concentrada do segredo no governante que o princípio do medo movimenta o arbítrio da atuação despótica.

O não estar em casa no mundo com regimes com estas características levou o presidente Roosevelt a afirmar, em 1941, a importância de quatro liberdades indispensáveis à existência dos seres humanos. Entre elas, a liberdade de viver sem medo. A importância desta liberdade foi consagrada no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Dela deflui o artigo XII da Declaração: "Ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e à sua reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques."

A Declaração é um dos primeiros textos jurídicos que tratam do direito à vida privada e à intimidade. Esse direito dá uma expressão concreta à liberdade de viver sem medo, pois uma das características do totalitarismo havia sido justamente estender a ubiqüidade do poder à vida privada para alcançar uma dominação total.

O direito à vida privada é uma das vertentes da liberdade: a da liberdade como não-interferência, usufruída num espaço próprio, que permite uma esfera de ação não controlada pelo poder. Esta liberdade enseja, dentro dos limites de um Estado de Direito, a cada ser humano uma porção de existência independente do controle social. Um dos meios jurídico-políticos de garantir essa liberdade é o combate à ilícita espionagem secreta que a ameaça. É por essa razão que, na discussão sobre a democracia, Bobbio realça a importância de se garantir a visibilidade e a transparência do poder como critério de bom governo. É o que fundamenta o princípio constitucional da publicidade da administração pública e a luta democrática contra o criptogoverno. Este opera na sombra e dele participam os serviços secretos em clandestina atuação própria, articulada com outras esferas de governo, estendendo tentáculos de poder em direção à sociedade.

Os grampos e as escutas telefônicas ilegais e as solicitadas e autorizadas de maneira leviana são hoje, em nosso país, uma expressão de um significativo papel de criptogoverno que vem sendo exercido pela Polícia Federal e pela Abin. Elas se vêem facilitadas pelas inovações tecnológicas que tornam a intrusividade na vida privada muito fácil. É por este motivo que ao cenário big brother do Estado policial forte apto a impor o medo se soma, como lembra Tércio Sampaio Ferraz Jr., o cenário little-sister. Este resulta das máfias privadas que obtêm clandestino acesso técnico às informações para vendê-las, configurando um subgoverno invisível de um mercado ilícito. Daí a banalização do mal de um fenômeno que ameaça a liberdade, o Estado de Direito e a democracia.

Iniciei este artigo com Montesquieu, lembrando o papel da divisão dos Poderes para uma sociedade livre na contenção dos excessos do poder. Cabe concluir reiterando que a atuação do presidente do STF, Gilmar Mendes, e de seus pares e do Legislativo no trato dos grampos e escutas ilegais como meio de conter o crescimento do criptogoverno público e privado merece reconhecimento e aplauso. É a esperança da cidadania de coibir o princípio do medo - esta pressa sem caminho, que vem de todos os lados, para relembrar Guimarães Rosa - que crescentemente nos rodeia.

Celso Lafer, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras, foi ministro das Relações Exteriores no governo FHC


Arquivo do blog