Ameaças ao nosso gasoduto Um risco na crise criada pelos desmandos populistas de
Os moradores de Cobija, capital do Departamento de Pando, na fronteira com o Acre, preparavam-se há dias para resistir à invasão da cidade pelos partidários do presidente Evo Morales. O confronto finalmente ocorreu na manhã de quinta-feira passada. Foi uma verdadeira batalha campal num lugarejo a 15 quilômetros do centro, com catorze mortos e meia centena de feridos, a maioria deles por tiros ou golpes de porrete. Durante o restante do dia, com os moradores trancados em suas casas, grupos de manifestantes empolgados com a batalha continuaram nas ruas, saqueando e queimando qualquer coisa que lembrasse o governo nacional. Uma loja saqueada pertencia a uma prima de Morales. Outra, atacada com bombas, era de propriedade de uma família acusada de fornecer armas aos governistas. O que se via em Cobija foi uma síntese do que a política deletéria de Morales produziu na Bolívia: um país dilacerado, em que cinco dos nove departamentos simplesmente ignoram as ordens vindas da capital, La Paz. Bolívia é um lugar sem relevância internacional – exceto para o Brasil. Fosse apenas o alarido causado pelo discurso atrasado de Morales, o que acontece por lá seria somente um foco de constrangimento para os países vizinhos. Torna-se um problema grave para o Brasil devido à dependência nacional em relação ao gás natural produzido em território boliviano. Na semana passada, sabotagens nos gasodutos provocaram a redução de 10% no fornecimento, situação que pode persistir por uma ou duas semanas. "O Brasil fez uma aposta muito arriscada ao permitir que metade do gás consumido no país estivesse nas mãos da Bolívia e agora corre o risco de pagar caro por isso", diz o economista Adriano Pires, do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura. Quando Morales nacionalizou a produção de gás, em 2006, e o governo Lula preferiu colocar panos quentes na afronta, a Petrobras viu-se sem outra saída, exceto aceitar os contratos desfavoráveis impostos pelo governo boliviano, sob o risco de uma crise de abastecimento no país. O corte de 10% é administrável – os reservatórios das hidrelétricas estão cheios e a Petrobras pode substituir o gás por óleo como combustível para as usinas termelétricas –, mas há risco de ocorrerem novas sabotagens nos gasodutos.
O futuro do abastecimento é agora tão incerto quanto o da própria Bolívia. Nas últimas duas semanas, os bloqueios de estradas e as manifestações oposicionistas paralisaram o país. A culpa é de Morales e de sua ideologia do século passado. No poder desde janeiro de 2006, ele quer colocar toda a economia nacional sob controle do estado boliviano. Ao receber dois terços dos votos num referendo revogatório que ele próprio convocou, no mês passado, o presidente interpretou que a população boliviana estava a favor de seu projeto de Constituição, aprovado de madrugada numa base militar sem a presença de opositores. Nesse texto, Morales quer provocar a divisão étnica de um país onde sete em cada dez habitantes se consideram mestiços. A Bolívia seria separada em 36 nações indígenas, cada uma delas com autonomia para criar sistemas judiciários próprios e aplicar castigos tradicionais, como o açoite. "Desde que assumiu, Morales virou as costas para o povo que vive fora de sua base eleitoral e só governa para os andinos", diz Ana Milena de Suzuki, presidente do Comitê Cívico de Pando. Para os oposicionistas, a gota d’água foi a convocação, ao arrepio da lei, de um referendo para ratificar a nova Constituição e o corte das verbas destinadas aos departamentos, desviadas para os programas clientelistas de Morales. A oposição regional ao governo de Evo Morales, organizada pelos comitês cívicos, conta com enorme apoio popular e raízes profundas: a União da Juventude Cruzenha, líder nas manifestações em Santa Cruz, existe desde 1957 como esforço para dar alguma representação política aos moradores do departamento. A primeira eleição para governadores foi em 2005 – até então, eles eram indicados pelo presidente. À frente da oposição está Santa Cruz, o departamento mais empreendedor, próspero e com maior presença de fazendeiros brasileiros. Os cruzenhos não querem um novo país, mas a autonomia de um estado brasileiro: autoridade para criar leis, decidir o que vai ser ensinado nas escolas e determinar o trajeto dos ônibus municipais. Hoje, tudo isso é resolvido em La Paz. Não se vê vestígio do governo de Evo Morales em Santa Cruz de La Sierra, a capital do departamento. É impossível percorrer uma quadra do centro sem ler uma pichação pedindo resistência, a sigla de um partido regional ou uma ofensa a Morales. "O presidente quer voltar quarenta anos e fazer uma mudança similar à de Cuba, mas nós somos um povo progressista que quer o futuro", disse a VEJA o arquiteto Daniel Saavedra, que na quinta-feira examinava o que sobrou da sede saqueada do Ministério do Trabalho. No país onde bastam dez pessoas, dois pneus e um pouco de gasolina para interromper o fluxo de uma estrada, os bloqueios se multiplicaram. No caminho para a refinaria Guillermo Bell, a 2 quilômetros de Santa Cruz de la Sierra, um grupo de apenas vinte pessoas impedia o trânsito na avenida. "O gasoduto passa perto das nossas casas, mas temos de fazer fila para comprar gás de cozinha", disse Loreto Moreno, presidente da associação de moradores do bairro, que organizou o protesto. Bloqueio de estradas, saques e protestos violentos são estratégias que a oposição copiou do próprio Evo Morales. Com esses métodos violentos ele tornou impossível a vida de vários presidentes, até chegar ao poder. Hoje, o presidente tenta asfixiar a oposição impedindo que os cinco departamentos recebam alimentos e combustível. Como sempre na Bolívia, o futuro depende de quem controla as Forças Armadas. Na noite de sexta-feira passada, pela primeira vez, a soldadesca apareceu na crise atual e recuperou, a tiros, o aeroporto de Cobija, que tinha sido fechado pelos oposicionistas. Morales preferiu atirar em outra direção. Fiel ao manual populista, ele tratou de expulsar o embaixador americano. A medida foi combinada com o venezuelano Hugo Chávez, que fez a mesma coisa (veja quadro). Ao escolher o governo americano para bode expiatório, Morales quis dar proporções internacionais à crise que está descosturando a Bolívia. Um esforço inútil para jogar para fora das fronteiras o problema doméstico que ele próprio criou. "O primeiro dia de paz será o último do meu mandato", previu Simon Bolívar em seu famoso discurso de Angostura, em 1818. Neste momento, a frase de Bolívar, o herói que a Bolívia homenageia com o próprio nome, ajusta-se com perfeição à situação em que se encontra Evo Morales.
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