Concordo com João Furtado quando, em recente ensaio na Revista Novos Estudos, diz que o nosso desenvolvimento econômico não pode depender basicamente de fontes de demanda externa. Os efeitos das exportações sobre a taxa de câmbio inibem nossa competitividade em setores com mais tecnologia e nos condenam à volta a uma especialização "colonial" em matérias-primas. O nível de complexidade da estrutura produtiva brasileira de bens e serviços já é muito menor hoje do que foi no início dos anos 80. Nossa balança comercial com a China é um exemplo contundente: exportamos produtos primários e importamos bens tecnológicos. O Brasil pode promover políticas ativas que ofereçam oportunidades de desenvolvimento tecnológico setorizado e mudem o perfil de nossa produção e exportação, fugindo da armadilha do câmbio depreciado e do juro elevadíssimo como única forma de controle da inflação. Se agirmos com competência e rapidez, as novas descobertas petrolíferas podem ajudar. É fundamental que as regras a serem fixadas permitam um controle sólido do Estado sobre a dinâmica de exploração e concorrência. Não se trata de estatismo senil, mas de admitir a evidência óbvia de que os novos campos são tão significativos que mudam profundamente escalas e estratégias. O Estado nacional, juntamente com a sociedade civil, tem a obrigação de estar no centro dessas decisões e abrir ao setor privado parcerias necessárias e convenientes. A Petrobrás, apesar do seu porcentual significativo de acionistas privados locais e internacionais, deverá continuar sendo o ator operacional mais importante desse novo modelo. Mas sob comando do interesse público mais amplo.
O desafio é transformar o pré-sal num dos eixos de um projeto de desenvolvimento que concilie integração das cadeias produtivas com condição competitiva externa fundada em tecnologias inovadoras. Isso implica romper de vez com certos resquícios neoliberais, frutos de um discurso hegemônico ultrapassado. Curioso que vários dos atuais defensores intransigentes da manutenção na Petrobrás no controle de toda a política referente ao pré-sal foram incentivadores de sua privatização durante os anos 90, quando a Vale do Rio Doce - a outra jóia da coroa - acabou leiloada. O argumento era que uma empresa estatal é intrinsecamente ineficiente e não teria condições para operar o setor de petróleo no Brasil na condição de protagonista principal!
O Estado pode e deve assumir responsabilidades definidas no planejamento e implantação de políticas industriais, como fizeram - e ainda fazem - inúmeras nações hoje desenvolvidas. Não foi de outra maneira que a Coréia do Sul, 25 anos atrás com um PIB per capita apenas igual ao do Brasil, conseguiu se transformar num país rico. Após fabricar autopeças para todos os carros japoneses durante mais de duas décadas, o país teve a coragem de partir para marcas próprias. E se converteu num dos mais respeitados fabricantes globais. Nos anos 80 o Brasil também tinha uma pujante indústria de autopeças. Hoje é apenas um local de montagem de carros pequenos e médios das grandes empresas internacionais, inclusive coreanas. O mesmo se deu com o setor de estaleiros. Um dos maiores fabricantes de navios do mundo, a Coréia tem aço barato e ampla costa marítima. Nós temos ambos, mas nossa produção no setor é desprezível. Por quê? Sucessivos governos coreanos decidiram que podiam e queriam ser mundialmente competitivos nessas áreas. Estruturaram-se, operaram planos setoriais de médio e longo prazos e obtiveram ótimos resultados.
No caso do pré-sal, o Centro de Pesquisas da Petrobrás, referencial mundial de excelência em soluções para águas profundas, está habilitado a coordenar o desenvolvimento de projetos e novas tecnologias para eliminar os gargalos do pré-sal. Será necessário viabilizar a exploração comercial do gás natural gerado no processo, teoricamente suficiente para nossa auto-suficiência e ampla exportação. Isso implicará soluções inéditas, como a construção de unidades marítimas de liquefação de grande porte. O sistema de produção também exigirá navios perfuradores especiais. São previstos investimentos de US$ 40 bilhões por ano, 5% da nossa produção industrial. David Kupfer lembra que isso permite formatar uma política para desenvolver parte da cadeia produtiva do petróleo e gás no Brasil. Se não o fizermos, viraremos outra vez meros exportadores de matéria-prima. Produção com valor adicionado e bons empregos ficarão lá fora, incluindo serviços de geofísica, atividades de perfuração, máquinas e equipamentos especiais, fundidos e forjados e embarcações.
Temos ótimas condições para não perder essa bela oportunidade de consolidar um novo ciclo de crescimento, dessa vez amarrado na demanda interna. Somente a Petrobrás prevê para o pré-sal a compra de 70 petroleiros, 176 barcos de apoio e 18 plataformas de produção. A definição da demanda futura possibilitará a maturação dos investimentos privados em território brasileiro, tanto nacionais quanto internacionais, que deverão ter certas prioridades. Bom senso, certa ousadia e controle adequado dos lobbies podem transformar o pré-sal em bem público de primeira grandeza.
Informo leitores e amigos que cometi mais um romance. Chama-se O Incidente (Paz e Terra) e está chegando às livrarias. Desculpem o abuso.
Gilberto Dupas, coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional (IRI-USP), presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI), é autor de vários livros, entre os quais, O Mito do Progresso (Editora Unesp)