Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 10, 2008

Soljenítsin, a alma da velha e eterna Rússia

O ESTADO DE S PAULO,

Sua obra literária, que deixou os traços mais profundos, é a de um homem que conhecia muito bem a história e a política, mas que as lia com iluminações trazidas de um outro lado do tempo

Gilles Lapouge*


Corria o ano de 1975 quando conheci Alexander Soljenítsin, o escritor russo morto há uma semana. Eu já havia lido Um Dia na Vida de Ivan Denisovich, obra-prima que nos mergulha no inferno dos campos de trabalhos forçados por meio das provações do camponês Denisovich. Gostei. Mas para abarcar a magnitude da tragédia russa, esperei alguns anos até O Arquipélago Gulag ser lançado na França.

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Eu reagi como muitos, muito lentamente. Para que o Ocidente tivesse a medida do horror, foi preciso que um escritor nos ensinasse o nome do horror, Gulag, e nos permitisse ver o invisível daqueles tempos - os campos de trabalhos forçados.

Em 1974, Soljenítsin, que perdera o apoio de Nikita Kruchev, pois este havia sido deposto e substituído por Leonid Brejnev - que detestava o escritor -, foi expulso da União Soviética. O proscrito passou então alguns meses na Suíça antes de seguir para os Estados Unidos. Foi nessa ocasião que eu o vi.

Naquela época, eu participava toda semana de um programa sobre literatura na TV, Apostrophes, de Bernard Pivot. Pivot convidou Soljenítsin. Ele veio. Pela primeira vez no Ocidente, eu creio, aparecia o rosto do autor do Gulag.

Do que foi dito naquela noite, pouco me recordo. A presença física daquele homem era esmagadora. Poderia dizer-se que era alguma coisa pertencente à natureza, uma árvore, um rochedo gigante. Ou uma catedral. Austero, inspirado, e, de vez em quando, explosões de riso. No set, todos estavam intimidados. Pivot fez uma bela entrevista. Eu permaneci no meu canto, quase mudo. Havia dois outros convidados, Jean d?Ormesson, do Le Figaro, e Jean Daniel, do Nouvel Observateur, mais aguerridos, o que lhes permitiu fazer melhor figura. Daniel tentou obter de Soljenítsin uma condenação da guerra que a França movia contra os nacionalistas argelinos. Em vão.

Durante a transmissão e depois, Soljenítsin nos contou o seguinte: em um daqueles campos, ele escrevia, em folhas recuperadas, textos breves, fragmentos, poemas, mas não podia guardá-las por causa das buscas. Assim, ele as lia e relia e, depois de memorizá-las bem, as comia. Essa lembrança me impressionou: comer seu próprio pensamento para não o entregar ou perder.

Mais tarde, no enorme A Roda Vermelha, uma personagem diz: "Já não tenho acesso às bibliotecas públicas. Os arquivos ficarão fechados para mim até a minha morte. Mas encontrarei na taiga uma casca de pinheiro ou de bétula. Meu privilégio, nenhum espião me tirará: o cataclismo que experimentei em minha pessoa e vi nas outras pode me soprar muitos achados sobre a história."

Em 1976, Soljenítsin partiu para Vermont, nos EUA. Ali, ele morava em uma casa cercada de pinheiros e bétulas como na Rússia. Ele se recusou a aprender inglês. Desprezava o "modo de vida ocidental" e vociferava contra os EUA. Em 1994, ele finalmente voltou à Rússia.

Era um combatente que voltava. Ele vituperava Boris Yeltsin, a nova Rússia, desprezava Mikhail Gorbachev que, no entanto, participara da destruição da URSS. Ele não mudara: uma vez "imprecador", sempre imprecador! Mesmo com o Gulag extinto, Soljenítsin pratica o incansável anátema.

Aqueles anos de exílio, mais os de retorno à terra russa, foram objeto de lamentos, indignações, acusações, mesmo da parte dos que admiravam a contribuição do "colosso" para a extinção da URSS. A partir de seus novos livros e de suas conferências, ele completava a estátua de um homem intacto aos olhos do qual verdadeiramente nada encontra graça, e principalmente o Ocidente, imoral, fútil, glutão, amante de música ruim.

Henry Kissinger precipitou-se e pediu para Gerald Ford não recebê-lo. O russo replicou com uma conferência feroz. Ele aceitou voltar à França em uma ocasião: para celebrar a revolta sangrenta dos vendeanos, em 1792, contra a Revolução Francesa de 1789. E quando lhe falavam dos direitos humanos, ele dava de ombros: uma "tolice".

Seu romance A Roda Vermelha mostra um anti-semitismo virulento. Ele repreendeu os americanos por terem saído do Vietnã. Mais estranho: quando Vladimir Putin chegou ao poder - Putin, o antigo agente daquela KGB que o deixou preso por tanto tempo -, ele o encontrou. Putin sofreria os raios do imprecador? Absolutamente. Os dois homens se entenderam muito bem. E se o escritor censurou a primeira guerra da Chechênia, ele aprovou a segunda, a que lançou os soldados de Putin contra muçulmanos nos escombros da Chechênia.

Esse fim de vida foi mal compreendido e severamente julgado mesmo na Rússia. Os indulgentes diziam que ele envelhecera, que continuava prisioneiro de seu velho heroísmo. Os maledicentes diziam que, mesmo no tempo de seu gênio, ele já era assim: um reacionário, um eslavófilo, um xenófobo, um fascista, etc. Para mim, essas interpretações são ineptas.

São ineptas porque o colocam onde ele não está, ou jamais desejou estar. Quiseram fazer dele um "dissidente", o "príncipe dos dissidentes". Ele não era um dissidente. Não gostava de Andrei Siniavski.

Mesmo o grande Varlam Chalamov, que passou 17 anos na Kolyma, em campos ainda piores que os de Soljenítsin, não encontrou simpatia aos olhos do escritor.

O cientista Andrei Sakharov, o mais célebre dos dissidentes, não foi melhor tratado. O choque dos dois homens aconteceu nos anos 70, após a breve abertura na época de Kruchev, na dacha do músico Mstislav Rostropovich.

O que Soljenítsin reprovava em Sakharov não foi ele ter criado a bomba atômica soviética, mas inscrever-se e trabalhar para o futuro. Sakharov era a "modernidade". Soljenítsin se situa no passado, ou melhor, numa espécie de eternidade, na sagrada e eterna Rússia.

Quem quiser compreendê-lo, admirá-lo, como ele merece, isto é, absolutamente, não será à luz de Hegel, Nietzsche, Karl Marx ou Tocqueville, Lenin ou Raymond Aron que deverá auscultá-lo.

É naqueles "loucos de Deus" que no século 19 palmilhavam os caminhos poeirentos da Rússia em busca da fé e da verdade.

É naqueles antigos cristãos que preferiam se enfurnar nas florestas a se dobrar ao calendário gregoriano proclamado no século 16 pelo papa de Roma, Gregório XIII, em 1582, que cometera o sacrilégio de mexer no tempo de Deus. Nos intratáveis aos quais Pedro, o Grande havia ordenado que cortassem a barba porque eles rejeitavam a lei do czar em nome da reverência a Deus (não é por acaso que Soljenítsin deixava crescer aquela imensa barba).

Em O Carvalho e o Bezerro ele escreve: "Eu havia afrontado sua ideologia. Mas ao marchar contra eles, é minha própria cabeça que eu carregava sob meu braço." Esse texto lembra o ortodoxo Jean François Colosimo, faz eco a um ícone célebre. João Batista, após sua decapitação, metamorfoseado em anjo do Juízo Final, precede a descida de Cristo ao inferno, abre-lhe a porta e anuncia a próxima ressurreição do verbo.

O verbo, porque esta é a ferramenta de Soljenítsin, como é a grande ferramenta, juntamente com os canhões, de todos que moldaram a história dos povos. O que justifica os numerosos estudos que tentam situar Soljenítsin na literatura russa. Dois nomes lhe são opostos constantemente: Tolstoi e Dostoievski.

Essas comparações são inúteis. Cada um desses três gigantes não tem rival. Soljenítsin compara-se melhor a Tolstoi. Isso se justifica: a amplidão das obras está lá. Se Tolstoi escreveu a epopéia da Rússia em face de Napoleão, em 1812, Soljenítsin relatou uma epopéia ainda mais tenebrosa, a do Gulag, mas nos dois casos com uma arte tal que seus livros fixaram para sempre esses momentos do tempo. Napoleão na Rússia para sempre: é Tolstoi.

Mas a comparação com Tolstoi não é absoluta. Tolstoi, como Victor Hugo, como Voltaire, como Soljenítsin, recusava a sociedade injusta de seu tempo, era um "rebelde". Ele queria reformar, arrumar, mas não ignorava a filosofia das Luzes, que Soljenítsin execrava.

Ele é o herdeiro, senão de Voltaire, ao menos de Rousseau. Todos os seres são dotados de razão. O Deus de Tolstoi, também é dotado de razão. Tolstoi se bate por um cristianismo menos injusto, "racional".

Soljenítsin faz alusão crítica a esse cristianismo de Tolstoi em A Roda Vermelha. Seu Deus, por estar presente em toda parte, por habitar cada homem, cada árvore, não é absolutamente um Deus de razão. Uma das personagens de Soljenítsin, nomeado O astrólogo, se dá ao trabalho de demonstrar aos jovens que vieram consultá-lo que o cristianismo não é absolutamente racional: "O cristianismo é irracional porque coloca a Justiça acima de todo cálculo terrestre."

Nesse sentido, Soljenítsin me parece mais próximo do outro grande russo, Dostoievski, este outro "louco de Deus", "esse irracional" (ver a Lenda do Grande Inquisidor em Os Irmãos Karamazov), desse Dostoievski que foi igualmente atacado como "eslavófilo" como se ataca Soljenítsin pela mesma razão.

Resta uma estranheza, uma lição: a obra literária que realizou as maiores proezas nesses dois séculos, a que deixou os traços mais terríveis, mais profundos na figura de nosso tempo, é a obra de um homem que conhecia muito bem a história, a política, mas que as lia com iluminações trazidas de um outro lado do tempo.

Seu pensamento tirava sua força e sua fatalidade da imagem que fazia de uma Rússia eterna, uma espécie de miragem, em suma, que brilhava para além dos dias e das noites, uma "miragem" que é a verdade mesma, e da qual a Rússia dos czares, a de Stalin, a de Ivan, o Terrível, ou de Catarina, a Grande não passa de efígies provisórias, esboços sucessivos da verdadeira Rússia que flutua fora do tempo.

Uma das fortalezas políticas mais poderosas do século 20, a cidadela soviética, foi posta abaixo pela política, pelas legiões e pelas manufaturas do Ocidente, mas também por dois homens, muito enraizados ambos nesse século, mas que tiravam sua força de uma palavra que emanava dos confins do tempo: o papa João Paulo II e o escritor Alexander Soljenítsin.

TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK

*Gilles Lapouge é correspondente em Paris

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