REVISTA VEJA
Já é possível comemorar o julgamento do mensalão, em curso no STF. Um de seus efeitos mais relevantes é provar a independência do Judiciário. Em todo o mundo, essa foi uma das características que permitiram construir a democracia e o ambiente do qual emergiriam a prosperidade capitalista e o bem-estar da sociedade. Para entendermos essa realidade, façamos um rápido sobrevoo pela evolução que trouxe o mundo até aqui.
Na maior parte dos últimos 10000 anos, os países que enriqueciam eram aqueles capazes de reunir recursos financeiros, materiais e humanos para guerras de conquista. Durante muito tempo, as receitas públicas da Roma antiga provinham da pilhagem dos povos dominados. A partir do século XVII, a prosperidade passou a depender de instituições propícias ao desenvolvimento capitalista, cujo êxito tem apenas dois séculos.
O marco desse processo é a Revolução Gloriosa (1688), na Inglaterra, da qual nasceriam as condições que viabilizaram a Revolução Industrial. Dados levantados por Angus Maddison mostram que nos três milênios anteriores o padrão de vida da maioria dos países se alterou muito pouco. Em 1800, a expectativa de vida de um inglês era semelhante à de um habitante da Roma antiga. Sua altura, resultado da qualidade da alimentação e da exposição a doenças, era menor do que na Idade da Pedra.
A Revolução Gloriosa, liderada pelo holandês William de Orange, à frente das tropas que invadiram a Inglaterra, recebeu o apoio da nobreza, do clero e dos comerciantes ingleses, descontentes com o reinado de James II, que foi deposto. Para ascender ao trono, William assinou a Declaração de Direitos, que, entre outras inovações institucionais, transferia a supremacia do poder para o Parlamento e proibia a demissão de juizes. Morriam o absolutismo e a tirania, nascia a independência do Judiciário.
Aprovada pelo Parlamento, a Declaração de Direitos se transformou na Carta de Direitos (Bill of Rights, 1689). No campo judicial, ela ampliava conquistas anteriores, como a instituição do habeas corpus (1679) e a extinção da odiada Star Chamber (1641), tribunal que julgava processos de interesse da monarquia. O rei podia indicar juizes dessa corte, demiti-los e influenciar nas decisões. Para Douglass North e Mancur Olson, as mudanças estabeleceram garantias de liberdades individuais, de respeito aos contratos e de direitos de propriedade, inclusive em favor dos críticos do governo. A segurança jurídica se tornou maior na Inglaterra do que em qualquer outro país. Esse ambiente contribuiu decisivamente para as transformações geradoras do desenvolvimento. Tinha-se agora o governo das leis, e não dos homens. A previsibilidade e a estabilidade das regras forjavam a confiança nas relações entre os agentes econômicos, fundamentais para os negócios e a prosperidade.
A independência do Judiciário brasileiro foi inscrita na Constituição de 1988, mas está agora comprovada nesse memorável julgamento do STF, cujo desenrolar demonstra inequivocamente o nosso amadurecimento institucional. Erraram os líderes do PT que esperavam dos juizes indicados por Lula e Dilma uma submissa declaração de inocência dos réus. Ao contrário, a expressiva maioria deles tem-se guiado por sua consciência e pelos autos. O compromisso com a história pessoal, com a carreira profissional e com a verdade se sobrepôs a pressões de qualquer natureza.
Há muito que avançar no Judiciário brasileiro. Muitos juizes ainda têm dificuldade de entender o sistema capitalista e os incentivos que levam indivíduos e empresas a assumir riscos, empreender, investir e inovar. A morosidade, decorrência do complexo processo judicial, eleva custos de transação e inibe ganhos de produtividade da economia. Melhorias dependerão de reformas, inclusive dos currículos universitários. Seja como for, o julgamento do mensalão aflorou teses inovadoras, que podem fundamentar sentenças exemplares. Os custos da corrupção ficam mais evidentes e podem inibi-la. Acima de tudo, dispomos de um dos mais relevantes fundamentos institucionais do país. O Judiciário é um dos poderes autônomos da República, condição essencial para a democracia e para o desenvolvimento.
Entrevista:O Estado inteligente
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