Entrevista:O Estado inteligente

domingo, setembro 23, 2012

Reeleições 'ad infinitum'? - SERGIO FAUSTO


O Estado de S.Paulo - 23/09



Cresce na América do Sul uma onda de supressão dos limites constitucionais a reeleições sucessivas. Essa onda é impulsionada pela ideia-força de que presidentes-redentores precisam permanecer no poder até que a sua missão esteja concluída. A defesa de reeleições sucessivas faz parte de uma narrativa épica e maniqueísta que opõe elites antinacionais a forças populares e nacionalistas.

Hugo Chávez, da Venezuela, tenta reeleger-se pela terceira vez em outubro próximo, depois de quase 14 anos no poder. Em 2009, contrariando resultado de referendo popular, arrancou a reeleição sem limites do Congresso. Em julho último, Rafael Correa confirmou que buscará um terceiro mandato nas eleições presidenciais do próximo ano. A Constituição do Equador permite apenas uma reeleição, mas Correa alega que seu primeiro mandato foi obtido sob a vigência da Constituição anterior. Se reeleito, terá assegurado dez anos de permanência no poder. Evo Morales, da Bolívia, vale-se do mesmo argumento para justificar a possibilidade de disputar um terceiro mandato nas eleições de 2015. Se reeleito, terminará seu terceiro mandato em 2020, 15 anos após a sua primeira vitória eleitoral.

A essa onda de supressão de limites a reeleições sucessivas se junta agora Cristina Kirchner. As próximas eleições presidenciais na Argentina só ocorrerão em outubro de 2015. Antes, porém, a presidente precisa mudar a Constituição para ter direito a disputar um terceiro mandato. Caso ela consiga seu intento de mudar a Constituição e se reeleja mais uma vez, a permanência dos Kirchners na Casa Rosada se estenderá por 16 anos, se contarmos o mandato de seu antecessor e marido, o falecido Néstor Kirchner.

O "reeleicionismo" de Cristina Kirchner vem acompanhado da ascensão de La Cámpora, organização de jovens dirigentes e militantes políticos que invoca o legado da antiga Juventude Peronista (JP). A JP foi a ala radicalizada do peronismo que se integrou parcialmente às organizações armadas de esquerda entre o final dos anos 1960 e o início dos anos 1970, e terminou massacrada pela extrema direita e pelos militares durante a ditadura argentina. Há sincero fervor ideológico entre seus militantes. Eles se veem como protagonistas de uma história épica, como fica claro neste trecho extraído do site da organização. "Debemos considerarnos privilegiados por la Historia: hoy tenemos que dar la batalla ideológica de todos los tiempos: un país para pocos o un país para todos. Tenemos la oportunidad de continuar la pelea histórica por la redistribución del ingreso y la justicia social". La Cámpora introduziu uma narrativa ideológica e mística que faltava ao kirchnerismo. A luta pela (re)reeleição de Cristina é um desdobramento lógico dessa visão da História argentina.

Claro que La Cámpora é diferente dos Batallones Revolucionarios de Hugo Chávez, assim como o "cristinismo" é distinto do "chavismo" e este do nacionalismo indigenista de Evo Morales. Existe, no entanto, um traço comum a esses líderes, partidos, movimentos e seus adeptos que nos permite agrupá-los numa mesma "família política", a despeito de diferenças importantes entre eles. A partir de uma leitura maniqueísta da História, todos se creem incumbidos da missão autoatribuída de redimir seus países de mazelas seculares. Se não eles, ora, quem mais teria virtude e vontade suficientes para fazê-lo?

No desempenho dessa missão, o líder ocupa um lugar único. A missão entrega-lhe uma legitimidade especial, acima das instituições democráticas. E ele ou ela se entrega à missão com suas qualidades supostamente excepcionais. A Venezuela é o caso extremo, mas não singular, de fusão entre líder e missão histórica. Nos demais países referidos, são cada vez mais fortes tendências na mesma direção. Nesse contexto, não surpreenderiam novas extensões - ao infinito, quem sabe - do direito à reeleição, como fez Hugo Chávez. Se a superação de mazelas seculares requer tempo e poderes excepcionais ao líder, por que não remover ou enfraquecer restrições à permanência e ao exercício do poder dos presidentes-redentores? Se a missão assim o requer, se a correlação de forças assim o permite, por que render-se ao "fetichismo institucional", como recém-escreveu Ernesto Laclau, o pai intelectual do kirchnerismo?

Esses processos não têm produzido ditaduras. Afinal, continuam a se realizar eleições periódicas e formalmente livres e o confronto de ideias permanece aberto. Mas implicam a coação judicial à oposição e à imprensa, o uso político e arbitrário dos instrumentos de fiscalização e repressão do Estado, o envenenamento da atmosfera política pela estigmatização dos adversários como "inimigos do povo e da nação". As maiores vítimas são práticas, instituições e culturas políticas democráticas, destruídas onde existiam e sufocadas onde poderiam germinar.

O Brasil, felizmente, está fora dessa onda (assim como o Chile, o Uruguai, o Peru e a Colômbia). Uma das razões dessa diferença está na ausência de bases políticas e culturais para articulação de uma narrativa política épica de permanente enfrentamento entre dois blocos políticos opostos. O "nunca antes na História deste país" de Lula veio sempre temperado pelo molho da conciliação e diluído pela peculiar lógica da metamorfose ambulante.

Articulou-se, isso sim, uma narrativa em torno do "golpe das elites" para uso em momentos "oportunos". Ela é retomada agora, quando parece certa a condenação de próceres do PT pelo Supremo Tribunal Federal. Com as candidaturas do partido claudicando nas principais capitais e uma até aqui mal explicada "denúncia" de Marcos Valério à revista Veja, PT e aliados emitiram sexta-feira uma nota acusando as oposições de "golpismo" e comparando a conjuntura atual à que precedeu o suicídio de Getúlio Vargas.

Mas essa não é uma narrativa épica e maniqueísta. É apenas grosseiramente falsa, embora não deixe de ser perigosamente antidemocrática.

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