O GLOBO - 28/09
Diante de reclamações sobre a carga tributária, Everardo Maciel, ex-secretário da Receita, costuma dizer que ela é razão direta das despesas públicas. Se governos decidem abrir os cofres, cabe à Receita tratar de financiar o máximo dos gastos pela coleta de impostos. Foi assim que, para financiar um volume de gastos crescentes, diversos governos, incluindo os da ditadura militar, montaram uma eficiente e insaciável máquina arrecadadora.
A capacidade de se criar e cobrar gravame no Brasil é extraordinária. Usam-se inclusive artifícios juridicamente polêmicos. Relatório da própria Receita obtido pelo GLOBO revela que, nos últimos 11 anos, o Erário rompeu mais de 80 mil sigilos bancários, para rastrear 16.142 contribuintes, em busca de evasões. E assim o Tesouro amealhou R$ 56 bilhões, alegadamente desviados por sonegadores. A cifra equivale a quase três programas Bolsa Família.
Mas há contestações a esta invasão de sigilos sem autorização judicial. No fim do ano passado, uma empresa (GVA Indústria e Comércio) recorreu, com êxito, ao Supremo Tribunal Federal, para reclamar do acesso a seus extratos bancários sem a autorização de um juiz. Há outras ações. Porém, o STF abordará de maneira abrangente a questão quando julgar a ação de declaração de inconstitucionalidade (Adin) impetrada contra esta prática da Receita pelo Partido Social Liberal (PSL), confederações Nacional da Indústria (CNI) e do Comércio (CNC), e PTB. O governo, por meio da Advocacia-Geral da União (AGU), se baseia em leis e na Constituição na defesa da tese de que o acesso a informações bancárias pelo Estado, necessárias para efeito de fiscalização, não configura quebra de sigilo, preservado pela Receita.
O assunto é mesmo complexo, porque o Estado não pode ser impedido de vigiar o fluxo de dinheiro na economia, única maneira eficaz de detectar evasões, a atuação do crime organizado e indícios de corrupção, por exemplo. Mas é verdade, também, que, historicamente, o Estado brasileiro tende a tutelar a sociedade e a desrespeitar direitos civis fundamentais. Sintomático que haja tanta resistência, em certas áreas da burocracia pública, a aceitar a Lei de Acesso à Informação.
Além disso, vive-se num mundo digitalizado em que há enorme e crescente capacidade de armazenamento de informações sobre o cidadão por parte do Estado. A integração desses bancos de dados, aos quais poucos servidores públicos têm acesso, é algo preocupante do ponto de vista dos riscos à privacidade.
Parece possível conciliar com os direitos civis a acertada preocupação de agentes públicos em preservar o poder de fiscalização do Estado. Um bom exemplo é o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), informado sempre que há movimentações financeiras volumosas. O julgamento da Adin servirá para a delimitação de espaços entre interesses do Estado e as prerrogativas da sociedade.