O GLOBO - 11/02/12
Nos velhos tempos - pense na crise da dívida da América Latina nos anos 80 - conseguia-se reunir credores, em sua maioria grandes bancos, numa pequena sala e sair de lá com um acordo, ajudado por alguns agrados, ou mesmo queda de braço, por parte de governos e autoridades reguladoras ansiosos para que tudo corresse sem problemas. Mas, com o advento da securitização da dívida, os credores se tornaram muito mais numerosos e passaram a incluir fundos hedge e outros investidores sobre os quais reguladores e governos têm pouca influência.
Além disso, uma "inovação" nos mercados financeiros tornou possível que os detentores de títulos comprem um seguro. Isto permite que tenham um lugar na mesa, mas não arrisquem sua pele. Eles de fato têm interesses: querem receber o seguro, mas para isso o reescalonamento deve ser um "evento de crédito" - equivalente ao default. A insistência do BCE em reestruturação "voluntária" - que contorna o evento de crédito pos os dois lados em desacordo.
A ironia é que os reguladores permitiram a criação desse sistema disfuncional.
A posição do BCE é singular. O ideal era que os bancos tivessem feito seguro para se garantir em relação ao risco de default dos títulos em seus portfólios. Se fosse assim, o regulador preocupado com a estabilidade sistêmica ia querer que o segurador pagasse no caso de perda. Mas o BCE deseja que o banco tenha uma perda de 50% sobre os títulos em seu poder, sem que os benefícios do seguro tenham de ser pagos.
Há três explicações para a posição do BCE, nenhuma das quais fala a favor da instituição e de sua conduta regulatória e supervisora. A primeira é que os bancos de fato não compraram seguros e alguns adotaram posições especulativas. A segunda é que o BCE sabe que o sistema financeiro não tem transparência - e sabe que os investidores sabem que não podem medir o impacto de um default involuntário, o que poderia congelar os mercados de crédito, reprisando o que se seguiu ao colapso do Lehman Brothers, em setembro de 2008. Finalmente, o BCE pode estar tentando proteger os poucos bancos que fizeram seguro.
Nenhuma dessas explicações é uma desculpa adequada para a oposição do BCE a uma profunda reestruturação involuntária da dívida da Grécia. O BCE deveria ter insistido em maior transparência - de fato, esta deveria ter sido uma das principais lições de 2008. Os reguladores não deveriam ter permitido que os bancos especulassem como fizeram; a fazer alguma coisa, deveriam ter exigido que eles contratassem seguros - e então insistido no reescalonamento de uma forma que assegurasse o pagamento do seguro.
Há, além disso, pouca evidência que uma reestruturação profunda e involuntária seria mais traumática do que uma profunda e voluntária.
Ao insistir no caráter voluntário, o BCE pode estar tentando assegurar que o reescalonamento não seja profundo; mas, neste caso, ele está pondo os interesses dos bancos adiante dos da Grécia, para a qual uma profunda reestruturação é essencial se ela quiser emergir da crise. De fato, o BCE pode estar colocando os interesses de alguns poucos bancos que contrataram seguros (credit-defaultswap, CDS) na frente dos da Grécia, dos contribuintes europeus e dos credores que agiram com prudência e compraram seguros.
A última esquisitice da posição do BCE diz respeito à governança democrática.
A decisão sobre a ocorrência ou não de um evento de crédito é atribuída a um comitê secreto da International Swaps and Derivatives Association, um grupo setorial que tem interesse no resultado. Se algumas reportagens estiverem corretas, alguns membros do comitê têm usado sua posição para promover posições negociadoras mais acomodadas.
Mas parece injusto que o BCE delegue a um comitê secreto de participantes do mercado com interesse na questão o direito de determinar o que é uma reestruturação aceitável da dívida.
O único argumento que parece - pelo menos superficialmente - pôr o interesse público em primeiro lugar é que um reescalonamento involuntário poderia levar ao contágio financeiro, com grandes economias como as de Itália, Espanha e mesmo França enfrentando um drástico, e talvez proibitivo, aumento nos custos do crédito. Mas isto pede a pergunta: por que deveria um reescalonamento involuntário levar a um contágio mais forte do que um reescalonamento voluntário de profundidade comparável? Se o sistema bancário fosse bem regulado, com os bancos credores de dívidas soberanas tendo comprado seguro, uma reestruturação involuntária deveria perturbar menos os mercados financeiros.
É claro, poder-se-ia argumentar que, se a Grécia obtiver uma reestruturação involuntária, outros ficariam tentados a consegui-la também. Os mercados financeiros, preocupados com isso, imediatamente elevariam as taxas de juros para outros países da zona do euro, grandes e pequenos.
Mas os países que apresentam maior risco já foram excluídos dos mercados financeiros, então a possibilidade de uma reação de pânico é limitada.
É claro que outros ficariam tentados a imitar a Grécia se o país de fato estivesse em melhores condições fazendo a reestruturação do que não a fazendo. É verdade, mas todo mundo já sabe disso.
O comportamento do BCE não deveria causar surpresa: como vimos em outros lugares, instituições que não são democraticamente responsáveis tendem a ser capturadas por interesses especiais. Isto era verdade antes de 2008; infelizmente para a Europa - e para a economia global - o problema não foi adequadamente abordado desde então.