O Estado de S.Paulo - 17/07/11
A céu aberto, o Lada seguiu, engolindo poeira, com portas e para-choques já corroídos pela ferrugem. O carro havia sido fabricado nos anos 60, na longínqua região do Volga central, e chegou a Cuba graças ao Conselho para Assistência Econômica Mútua (Comecom) e o "intercâmbio justo" entre os povos.
Sua proprietária o conseguiu por meio de um sistema de méritos, quando ela disputou o benefício em intermináveis assembleias com os demais trabalhadores de seu hospital. A briga foi dura, pois vários médicos haviam participado de missões em vários países africanos, mas a lista dos sacrifícios que ela acumulara era muito maior.
Tinha até um diploma de reconhecimento firmado pelo líder máximo. E foi assim que ela conseguiu o carro: diante dos olhares felizes de alguns e invejosos de muitos. O veículo converteu-se rapidamente no seu bem mais precioso. Conduzi-lo pelas ruas era uma demonstração de seu sucesso social e de sua fidelidade ideológica incondicional.
Depois de algumas décadas, muitos dos felizes proprietários começaram a ver como sua criatura de rodas se deteriorava. O mercado de automóveis não foi liberado durante todo esse tempo, fazendo com que eles continuassem como os afortunados que desfrutavam de um privilégio remoto.
Somente carros ainda mais velhos, de marcas como Chevrolet, Cadillac ou Plymouth podiam ser comprados e vendidos legalmente dentro da improvisada estrutura do intercâmbio popular. No entanto, os carros produzidos na Europa Oriental estavam condenados a permanecer nas mãos dos ilustres trabalhadores agraciados com eles.
Uma contradição era incrível: apenas a propriedade dos carros comprados antes de 1959, sob o capitalismo, era respeitada, enquanto que os carros distribuídos sob a égide do socialismo não podiam ser transferidos.
Se o proprietário saía do país por mais de 11 meses, o carro era confiscado em nome de uma justiça social que nunca foi tão justa ou equitativa. O sorriso altaneiro sumiu do rosto de quem dirigia aqueles carros de comprovada resistência e design lamentável.
Então, aquele absurdo sistema de meritocracia acabou, ao menos na sua forma mais pura. Para adquirir os carros Toyota, Mitsubishi e Peugeot que começavam a ser importados, era preciso ter cacife político e dólares no bolso.
Com base nessa nova premissa, quem conseguia comprar carros eram músicos famosos, esportistas, membros da Marinha e artistas que vendiam suas obras no exterior. Durante muitos anos, o documento de autorização para compra de um desses veículos precisava ser assinado por Carlos Lage, vice-presidente do Conselho de Estado.
Até hoje, o processo para obter a autorização é tão complicado que pode demorar de cinco a dez anos, entre o pedido inicial e a compra. E esses reluzentes automóveis também não podem ser cedidos ou vendidos para uma outra pessoa.
Todo esse controle sobre o comércio de carros tem por finalidade impedir que as diferenças sociais se tornem tão visíveis. Da mesma maneira, o mercado imobiliário e de outros símbolos de status também foi congelado. A igualdade foi definida por decreto e não pela existência de uma proposta socialista.
A abertura de revendedoras onde não seria preciso mostrar a insígnia da fidelidade ideológica ou a bendita carta assinada por um alto funcionário era uma ideia que ofendia os orientadores do igualitarismo tosco. Foram justamente esses burocratas - que já possuíam seus carros - que criaram mais de 40 limitações legais para impedir que os outros pudessem adquirir seus veículos. A imobilidade tornou-se a norma de vida e o automóvel, um objeto inacessível.
Quando parecia que esse assunto já chegara às raias do absurdo, realizou-se o 6.º Congresso do Partido Comunista de Cuba. Entre as medidas aprovadas, foi anunciado o fim desse disparate. A abertura do mercado de compra e venda de automóveis começa a vigorar, de acordo com o conselho de ministros, antes do fim de 2011.
Finalmente, os veículos obtidos com base no ultrapassado sistema de mérito laboral poderão ser transferidos para outra pessoa. Com isso, chegaremos ao fim do último bastião de um período em que o importante não era o dinheiro que uma pessoa tinha, mas a ideologia que professava. A oferta e a demanda acabarão se impondo à chamada "distribuição racionada" e os orgulhosos proprietários de antigamente respiram aliviados ao olhar para seus carros Lada e Moskovich.
Finalmente, poderão transformar o fruto das suas virtudes políticas em dinheiro vivo. Trocarão aquele prêmio dado há décadas por uma moeda que pode ser convertida, por esse outro capital que nega tudo aquilo que um dia eles idealizaram. / TRADUÇÃO TEREZINHA MARTINO
É JORNALISTA CUBANA E AUTORA DO BLOG GENERACIÓN Y. EM 2008, RECEBEU O PRÊMIO ORTEGA Y GASSET DE JORNALISM
Entrevista:O Estado inteligente
- Índice atual:www.indicedeartigosetc.blogspot.com.br/
- INDICE ANTERIOR a Setembro 28, 2008
Arquivo do blog
-
▼
2011
(2527)
-
▼
julho
(245)
- DILMA: OS ENORMES RISCOS DA ESTRATÉGIA DE IMAGEM! ...
- O poder pelo poder GAUDÊNCIO TORQUATO
- A nova era na roda do chope JOÃO UBALDO RIBEIRO
- Teatro do absurdo MÍRIAM LEITÃO
- Foco errado CELSO MING
- As marcas do atraso JANIO DE FREITAS
- Uns craseiam, outros ganham fama FERREIRA GULLAR
- Chapa quente DORA KRAMER
- Corrupção - cortar o mal pela raiz SUELY CALDAS
- Liberdade, oh, liberdade DANUZA LEÃO
- Como Dilma está dirigindo? VINICIUS TORRES FREIRE
- Prévias? Não no meu partido MARCO ANTONIO VILLA
- Dilma se mostra Merval Pereira
- A reforma tributaria possível. Ives Gandra da Sil...
- Um plano para o calote Celso Ming
- O ''PAC'' que funciona EDITORIAL ESTADÃO
- Mudança de enfoque - Merval Pereira
- Dilma e as sofríveis escolhas ALOISIO DE TOLEDO CÉSAR
- Refrescar a indústria Míriam Leitão
- Míriam Leitão O dragão na porta
- Prévias da discórdia Merval Pereira
- O governo e a batalha do câmbio Luiz Carlos Mendon...
- Coragem e generosidade Nelson Motta
- O discreto charme da incompetência Josef Barat
- O que pensa a classe média? João Mellão Neto
- Mensagem ambígua Celso Ming
- Um boné na soleira Dora Kramer
- O sucesso de um modelo ALON FEUERWER KE
- Merval Pereira Bom sinal
- IVES GANDRA DA SILVA MARTINS - A velhice dos tempo...
- VINÍCIUS TORRES FREIRE - Dólar, bomba e tiro n"água
- A Copa não vale tudo isso EDITORIAL O ESTADÃO
- ALBERTO TAMER - Mais investimentos. Onde?
- CELSO MING - O dólar na mira, outra vez
- DORA KRAMER - Jogo das carapuças
- Dólar e juros MÍRIAM LEITÃO
- Ética flexível Merval Pereira
- Roubar, não pode mais EDITORIAL O Estado de S.Paulo
- Da crise financeira à fiscal e política Sergio Amaral
- Ficção científica nos EUA Vinicius Torres Freire
- Dólar, o que fazer? Míriam Leitão
- Lá se vão os anéis Dora Kramer
- Mundo que vai, mundo que volta Roberto de Pompeu ...
- Desembarque dos capitais Celso Ming
- E se não for o que parece? José Paulo Kupfer
- Economia Criativa em números Lidia Goldenstein
- A inundação continua Rolf Kuntz
- Abaixo a democracia! Reinaldo Azevedo
- Veja Edição 2227 • 27 de julho de 2011
- Faxina seletiva MERVAL PEREIRA
- Eles não falam ararês MÍRIAM LEITÃO
- O impasse continua - Celso Ming
- Insensata opção Dora Kramer
- O Brasil e a América Latina Rubens Barbosa
- Justiça, corrupção e impunidade Marco Antonio Villa
- Agronegócio familiar Xico Graziano
- Ruy Fabiano - A criminalização do Poder
- Imprensa, crime e castigo - Carlos Alberto Di Franco
- Quando o absurdo se torna realidade Antonio Pentea...
- Vale-tudo ideológico EDITORIAL O Globo
- O bagrinho Igor Gielow
- Com o dinheiro do povo Carlos Alberto Sardenberg
- Questão de fé RICARDO NOBLAT
- Celso Ming O que muda no emprego
- Alberto Tamer E aquela crise não veio
- João Ubaldo Ribeiro A corrupção democrática
- Danuza Leão Alguma coisa está errada
- Janio de Freitas Escândalos exemplares
- Merval Pereira Dilma e seus desafios
- Dora Kramer Vícios na origem
- Ferreira GullarTemos ou não temos presidente?
- Roberto Romano Segredo e bandalheira
- Agência Nacional da Propina-Revista Época
- Presidencialismo de transação:: Marco Antonio Villa
- Dilma e sua armadilha Merval Pereira
- Guerra fiscal sem controle Ricardo Brand
- A Pequena Depressão Paul Krugman
- Longo caminho Míriam Leitão
- De quintal a reserva legal KÁTIA ABREU
- O que vem agora? Celso Ming
- Marco Aurélio Nogueira O turismo globalizado
- Os perigos de 2012 Editorial O Estado de S. Paulo
- Guerra de dossiês Eliane Cantanhêde
- Sinais de alerta Merval Pereira
- União reforçada Miriam Leitão
- Pagar, doar, contribuir NELSON MOTTA
- Roncos da reação DORA KRAMER
- Festa cara para o contribuinte EDITORIAL O Estado ...
- Em torno da indignação FERNANDO GABEIRA
- Brasil esnobou os EUA. Errou - Alberto Tamer
- O baixo risco de ser corrupto no Brasil Leonardo A...
- Triste papel Merval Pereira
- Financiamento da energia elétrica - Adriano Pires ...
- O partido do euro - Demétrio Magnoli
- Trem-bala de grosso calibre - Roberto Macedo
- A cruz e a espada - Dora Kramer
- O grande arranjo - Celso Ming
- À luz do dia ELIANE CANTANHÊDE
- Entrevista: Maílson da Nóbrega
- Arminio Fraga "Europa entre o despreparo e a perpl...
-
▼
julho
(245)
- Blog do Lampreia
- Caio Blinder
- Adriano Pires
- Democracia Politica e novo reformismo
- Blog do VILLA
- Augusto Nunes
- Reinaldo Azevedo
- Conteudo Livre
- Indice anterior a 4 dezembro de 2005
- Google News
- INDICE ATUALIZADO
- INDICE ATE4 DEZEMBRO 2005
- Blog Noblat
- e-agora
- CLIPPING DE NOTICIAS
- truthout
- BLOG JOSIAS DE SOUZA