Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, março 02, 2011

David Kupfer Entrando nos trilhos


Valor Econômico - 02/03/2011
 

 

Publicada em 2 de fevereiro último com o título "Fora dos Trilhos", a coluna anterior enfocou um grave problema do atual modelo de desenvolvimento brasileiro que é provocado pela capacidade insuficiente ou desinteresse da empresa nacional em avançar na cadeia de agregação de valor às commodities, tão eficientemente produzidas no país. O texto conclui com a ideia de que a participação ativa da empresa no esforço de inovação é essencial para que se estabeleçam as necessárias conexões entre ciência e tecnologia requeridas para quebrar a inércia e colocar a indústria nos trilhos. Nessa coluna, vai-se explorar o tema da convergência entre as políticas industrial e de ciência e tecnologia, igualmente vital para a consecução desse objetivo.

Em uma estilização estrutural é possível afirmar que o Brasil ainda não conseguiu deixar de ser um país de processos ou, o que significa o mesmo, ainda está distante de se tornar um país de produtos. Isso é evidenciado pelo fato de que as atividades mais bem constituídas na estrutura industrial brasileira são quase todas voltadas para a elaboração de produtos homogêneos, em grandes escalas produtivas, por meio de sistemas de produção comandados pelos equipamentos, operados por empresas que souberam absorver a tecnologia originalmente comprada ou licenciada de detentores no exterior: cimento, siderurgia básica, química básica, etc.

A parcela da indústria na qual prevalece a diferenciação de produtos é proporcionalmente menor e muito menos pujante no país, especialmente em ramos de atividade como a indústria eletrônica ou de bens de capital nos quais os diferenciais de qualidade são mais crucialmente dependentes do conteúdo tecnológico do que tão somente de iniciativas de marketing ou esforço de vendas.

A principal implicação dessa característica estrutural sobre a dinâmica competitiva da indústria é o predomínio do padrão de concorrência baseado em custos. O problema é que como os custos sistêmicos de produzir no Brasil estão em expansão, refletindo a evolução negativa dos preços de insumos, energia e infraestrutura, da carga tributária, dos juros e do câmbio, não é difícil concluir pela piora do desempenho competitivo da indústria nacional. Uma experiência paradigmática desse tipo de problema é a vivida pela indústria brasileira de bens de capital.

De acordo com um estudo realizado pela Abimaq, o produtor de máquinas no Brasil incorre em um custo adicional de 43,8% em comparação a Alemanha e EUA. Desse valor, pouco mais da metade decorre dos maiores preços de insumos, logística e energia que vigoram no país enquanto o restante reflete os grandes diferenciais de custos tributários, paratributários e de capital que oneram a produção doméstica.

Mesmo que hipóteses contábeis distintas sejam adotadas, dificilmente se escapará da conclusão de que o custo Brasil é positivo e, pior, vem crescendo ao longo do tempo. Aliado a uma trajetória de apreciação cambial que amplifica essa desvantagem competitiva, a indústria se vê diante de um drama, que é ao mesmo tempo um desafio, de enfrentar a tendência de crescimento desses custos e sobreviver em uma competição cada vez mais acirrada com uma indústria internacional que enxerga o Brasil como um mercado cada vez mais atrativo.

Contudo, a atividade manufatureira não poderá apostar a sua sobrevivência apenas no retorno das estruturas de custos sistêmicos mais favoráveis de um passado que, vale lembrar, já vai longe, quando os preços das matérias-primas, energia, juros, etc. eram muito menores e geravam vantagens, e não desvantagens, competitivas para os produtores nacionais. Dada a baixa probabilidade de que essa transformação venha a ocorrer no curto ou mesmo no médio-prazo, é necessário que a indústria ponha em marcha uma resposta de cunho mais estratégico. Essa resposta deveria consistir da ampliação do peso da diferenciação de produtos nos padrões de concorrência dominantes, visando escapar da pressão de custos exercida pelos fabricantes chineses e de outros países emergentes com condições sistêmicas de produção mais favoráveis.

    Desafio é repensar as políticas industrial e de ciência e tecnologia, organizando-as de acordo com segmentos

É nesse ponto que as políticas industrial e de ciência e tecnologia precisam trabalhar em conjunto. Articulá-las é um "quebra-cabeças" em qualquer lugar do mundo e no Brasil não é nem poderia ser diferente. Aqui, a linha de convergência a ser buscada deveria contemplar exatamente esse objetivo estratégico de fomentar o papel da competição por diferenciação de produtos na estrutura industrial brasileira. Para tanto, será necessário modificar o desenho dessas políticas, substituindo a noção de setor sobre a qual estão construídas por outra, mais flexível, definida a partir de famílias de produtos ou de atividades. A título de exemplo, no caso do pré-sal, o que está em questão é uma cadeia produtiva extremamente ramificada, constituindo um objeto muito maior do que o setor econômico tal como convencionalmente estabelecido. Já no caso da informática, a situação é oposta de vez que os alvos que parecem pertinentes estão limitados a alguns de seus segmentos, formando nesse caso um objeto menor do que o setor.

Repensar as políticas industrial e de ciência e tecnologia, organizando-as não mais de acordo com os setores convencionais mas de acordo com segmentos que, como nos casos ilustrados acima, podem ser unidades maiores ou menores do que o setor, parece simples mas constitui um desafio institucional formidável. Mãos à obra, portanto, pois somente com o seu correto enfrentamento o modelo de desenvolvimento industrial brasileiro conseguirá entrar nos trilhos.

David Kupfer é professor do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador do Grupo de Indústria e Competitividade (GIC-IE/UFRJ. Escreve mensalmente às quartas-feiras.

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