Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, julho 08, 2009

José Nêumanne Culpa de todos justifica perdão aos amigos?

O ESTADO DE S. PAULO
A
notícia de que aliados do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP),
estocam munição para atacar os oposicionistas e, com isso, reduzir a
pressão do noticiário de escândalos do Senado dá ideia do ponto a que a
luta política leva os homens públicos no Brasil, mas se apoia em lógica
plana. Foi-se o tempo em que o Partido dos Trabalhadores (PT) e seu
constante candidato à Presidência da República buscavam diferenciar-se
dos adversários para chegar ao poder pela distinção de seu estofo do
restante dos colegas. Sua aliança com a velha elite dirigente dos
mandachuvas regionais (Jader Barbalho, José Sarney e tantos outros) e o
baixo clero mais rastaquera (que tem em Severino Cavalcanti seu
pontífice) os levou a mudar o tom do discurso político. E a delação do
"mensalão" pelo ex-aliado Roberto Jefferson forçou-os a virar o
discurso pelo avesso: "Eles não são diferentes de nós, somos farinha do
mesmo saco" - eis seu lema oculto. A vitória eleitoral em 2006 levou
Luiz Inácio Lula da Silva e toda a sua corte de áulicos a investirem
cada vez mais na tática genialmente definida pelo cafajeste Tavares,
personagem imortal do humorista Chico Anysio, que consagrou o bordão:
"Sou, mas quem não é?" Ou seja, "meus pecados deverão ser perdoados,
pois também são podres os dedos de todos quantos nos delatam". O feito
inédito e espetacular de atingir índices estratosféricos de
popularidade no segundo mandato, que normalmente conduz ao purgatório
da execração e, depois, ao ostracismo (vide Fernando Henrique e Carlos
Menem, dois exemplos recentes), fez com que o presidente imaginasse que
os milhões de votos somados a porcentuais crescentes de prestígio
popular lhe dão o condão da inimputabilidade transferível. Ou seja, ele
passaria não apenas a merecer indulgência plenária por todos os pecados
que viesse a cometer - incluindo os mais graves -, mas também a poder
ungir com o dom seus amigos de fé, seus irmãos, companheiros. Por isso,
saiu pelo País distribuindo essa unção a aliados de última hora cujos
pecados foram remidos pelos serviços prestados ao governo que redime os
pobres brasileiros de séculos de miséria e opróbrio. Noço guia genial
obra diariamente, mercê de sua notória capacidade de falar a língua de
flagelados da terra seca e favelados da periferia das urbes, o milagre
da transposição da redenção, distribuindo-a aos companheiros de jornada
e negando-a a renegados. Cultor da lógica simplista da metáfora do
ludopédio, Sua Excelência abusa de forma absurda do truísmo. Ao aceitar
o convite para participar de um ágape frequentado por tiranetes
africanos em Trípoli, recorreu a uma duvidosa norma social - ninguém
pergunta quais são os outros convidados de uma festa à qual comparece -
para negar a obviedade mais ululante de que ninguém é obrigado a dizer
sim a todos os convites que lhe são dirigidos. E fingiu desconhecer a
evidência de que nenhum chefe de Estado frequenta ambientes que não
sejam antes devassados por seus batedores e diplomatas. Foi essa crença
na própria capacidade de manipular a ignorância alheia (de mais de uma
centena de milhões de patrícios) que o levou a apostar todo o seu
cacife em lances de jogadores para os quais a definição de suspeitos
chega a ser elogiosa e cuja disposição para os deveres cívicos
inexiste. Com a prática de anos de investimento na demolição da
reputação alheia, Lula deve saber melhor que ninguém que a fonte da
divulgação dos escândalos na administração do Senado fica a uma
distância lunar dos adversários da oposição. É mais provável que ela
jorre nos jardins dos companheiros derrotados na disputa pela
presidência da Casa. Quando atribuiu ao PSDB e ao DEM a vontade de
ganhar o jogo no "tapetão", não estava fazendo um diagnóstico, mas
prolatando uma sentença dirigida principalmente aos próprios
correligionários. Como se diz no interior de Pernambuco, de onde ele
saiu em tenra idade, para o burro entender basta bater na cangalha. Sua
Excelência aposta na incompetência dos oposicionistas e na cega adesão
dos governistas. Do líder de seu partido no Senado, Aloizio Mercadante
(PT-SP), não surpreende a pusilanimidade de sugerir uma licença de 30
dias para José Sarney na véspera e, no dia seguinte, assumir o comando
da luta pela permanência do presidente da Casa em seu assento, mas,
sim, a incapacidade de perceber o óbvio. Até os peixes do espelho
d?água do Planalto sabem que Lula precisa do grupo de Sarney para
continuar fazendo o que bem entende no Congresso e, sobretudo, para
ajudar a carregar o poste Dilma Rousseff ao longo de uma exaustiva e
complicada campanha eleitoral presidencial. O que pode, então, ter dado
ao professor Mercadante a ilusão da autonomia que ele não tem, nunca
teve nem jamais terá? Muito mais esperto, Eduardo Suplicy (PT-SP) sabe
que pode bancar o independente, pois essa imagem é útil ao partido e
Lula aposta que, na hora de a onça beber água, ele será o primeiro a
evitar que alguma ovelha afoita impeça sua chegada ao rio. Suplicy só
pede a renúncia de Sarney porque tem a certeza de que nem este
renunciará nem ele será obrigado a votar por seu afastamento - não
porque não se disponha a isso, mas porque essa votação nunca vai
ocorrer. A escolha da estratégia de defesa de Sarney - a crise não é da
pessoa do velho patriarca, mas, sim, da instituição - revela, no fim
das contas, a causa da luta pela manutenção do status quo no Senado e
também a justificativa de Lula para exercer as funções - que se
atribuiu no poder - de perdoador-geral dos amigos e carrasco-mor dos
inimigos. O raciocínio é simplista: "Se a culpa é de todos e é
impossível punir todos, pois seria o fim do Estado Democrático de
Direito, vamos manter os companheiros no céu e os adversários no
purgatório da distância do poder." O resto é papo furado.

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