O ESTADO DE S. PAULO
Como os engenhos do escritor José Lins do Rego, encontra-se no momento em "fogo morto" a brasa soprada e reavivada por senadores oposicionistas, alguns ditos independentes e os que ousam destoar do coro dos contentes na base situacionista por obra e desgraça da sentença de Lula segundo quem os senadores são todos "pizzaiolos". Como não há notícia de que nenhum honrado pizzaiolo propriamente dito e sem aspas processará o presidente da República por confundir sua digna atividade com a atuação bem menos decente de coveiros de denúncias vivas, Sua Excelência pode dormir em paz e falar o que quiser de quem quiser, pois é improvável que algo de ruim lhe aconteça. Fica a questão: a sentença abusada caiu no vazio por terem os senadores vestido a carapuça ou por não ousarem desafiar a palavra real, ainda que esta os ofenda? É possível inferir que podem ser as duas coisas - a frase é verdadeira e o ofensor, inatingível pela ira dos ofendidos?
Ao contrário da repetição da História, em que a tragédia vira farsa, segundo Karl Marx, este é um drama sujo que retrata, de forma cruel e exata, nossa chanchada institucional. Repetindo o bordão triunfalista de Luiz Inácio Lula da Silva, "nunca antes na História deste país" o chefe do Poder Executivo interveio de forma tão descarada e desabusada nos negócios internos do Poder Legislativo sem necessidade de recorrer à força. Sempre que os militares precisaram intervir no Congresso Nacional, cercaram-no, fecharam-no ou recorreram a atos arbitrários, cassando mandatos. Noço guia não incomoda seus subordinados fardados para fazer o que resolve sem eles: primeiro, decretou que não havia crise no Senado, apesar da enxurrada de denúncias contra o presidente da Casa, José Sarney (PMDB-AP), e sua parentela; depois, decidiu sozinho que o próprio fica e desautorizou seu partido, cuja liderança tentara imitar o rei Salomão na forma, já que nunca reuniu condições de repeti-lo na inteligência, ao propor a saída "honrosa" de uma licença de um mês. O senador Aloizio Mercadante (PT-SP) não tugiu nem mugiu, permitindo que Lula deixasse claro que manda no governo, no Partido dos Trabalhadores (PT) e no Senado sem admitir contestações de nenhum deles.
O PT não ousa desafiar Lula por saber que não tem condições de manter todos os cargos que ocupa na máquina pública federal e em empresas como a Petrobrás se desafiar o presidente, que é maior em tudo do que o partido em que milita: apoio popular, capacidade de articulação e sagacidade política. Por isso, o chefe do Poder Executivo manda e provou que desmanda no próprio partido e no Senado, do qual não é nem nunca foi sequer membro. Mas isso por si só não o satisfaz. E, para deixar claro que manda quem pode e obedece quem é sabujo, Sua Excelência usou de sua habitual sem-cerimônia com a retórica para tisnar as togas dos varões do Senado com a definição jocosa com que a gíria paulistana põe no mesmo saco decentes pilotos de forno de pizzaria e maus agentes públicos que evitam julgar para não serem julgados. A reação destes mostra que Lula pode não saber o que diz, mas sabe, sim, o que faz. A reação pífia à ofensa vinda de cima mostra por que o ídolo das massas na chefia da República manda e desmanda num Poder soberano e autônomo, tratando detentores de mandato eletivo como vassalos.
Há ainda outra evidência de que, com o objetivo inconfessável de manter regalias sem ter de se explicar ao patrão - o cidadão -, os senadores se deixam humilhar publicamente pelo presidente. É a presença do sr. Paulo Duque (PMDB-RJ) na presidência do Conselho de Ética do Senado exatamente no momento crucial em que será julgado o destino do sobrenome da crise que se abate sobre a instituição: Sarney. O leitor atento haverá de perceber que o sr. acima usado não é uma abreviatura de senador, mas de senhor mesmo. Pois Duque não foi eleito para o Senado, mas é o segundo suplente do Sérgio Cabral Filho, que, diplomado governador, foi substituído pelo primeiro suplente, Régis Fichtner, que deu lugar ao ex-deputado estadual ao assumir a chefia da Casa Civil do Estado do Rio.
Mostrando não ser Duque por nobreza, mas por submissão aos caprichos reais, ele se tornou presidente do Conselho de Ética mercê dos serviços prestados na sessão em que presidiu a eleição da mesa da comissão parlamentar de inquérito (CPI) da Petrobrás - e não por mérito, mas por antiguidade. Fiel vassalo, o nobre parlamentar mandou às favas a lógica elementar ao impedir que o candidato da oposição à presidência da CPI, Álvaro Dias (PSDB-PR), se apresentasse aos eleitores antes de disputar o pleito, que já sabia perdido. O perdedor que se apresentasse depois da eleição, determinou. E isso lhe valeu o patrocínio do líder do PMDB, Renan Calheiros (AL), que preteriu Antônio Carlos Valadares (PSB-SE), candidato tido como "natural" apresentado por Mercadante (mais uma vez humilhado e de novo silenciado), para comandar o julgamento de Sarney.
No uso gozoso de sua súbita notoriedade, Duque definiu-se em poucas, mas significativas palavras, que resumem a filosofia dos donos do poder: "Sou chaguista mesmo. O meu estilo é atender ao povo. Atendo muito. Minha preocupação principal não é com grandes cargos na Petrobrás, é o feijão com arroz: cuidar da bica d?água, de internar quem precisa, de nomeação de gari. Dou valor a isso." Além de ter diagnosticado a natureza do regime do salário-família e explicado o êxito do pacto de Lula com as oligarquias de antanho, de que na oposição o PT fingia ser carrasco, ele assumiu com orgulho a herança do cabedal político de Chagas Freitas e exumou um ícone do convívio do Estado com a burla da lei para pô-lo a serviço de Lula, Renan, Sarney, Severino, Collor e outros figurões do atual (e novelho) regime.
Entrevista:O Estado inteligente
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