UM CASTIGO PARA A AMBEV
Por considerar que o gigante brasileiro do setor de bebidas
prejudicou a concorrência e os consumidores, o Cade
lhe aplica a maior multa de sua história
Benedito Sverberi
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• Quadro: Punição severa |
Em 2004, técnicos da Secretaria de Direito Econômico (SDE), órgão ligado ao Ministério da Justiça, encontraram na sede da AmBev, o gigante brasileiro do setor de bebidas, documentos embaraçosos para os administradores da empresa. Os investigadores procuravam informações sobre o programa Tô Contigo, que supostamente induzia de maneira ilegal donos de bares e restaurantes a vender produtos da AmBev com exclusividade. Alguns papéis que desencavaram traziam a seguinte anotação: "Tomar cuidado com o Cade". Em outras palavras, eles deviam ficar longe do alcance do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), a instituição encarregada de proteger a livre concorrência no Brasil. Na semana passada, ficou demonstrado que a preocupação dos executivos tinha fundamento. Ao encerrarem, depois de cinco anos, a análise do Tô Contigo, os conselheiros do Cade decidiram, por unanimidade, condenar a AmBev. "Concluímos que houve má-fé e a intenção de prejudicar os concorrentes", diz o conselheiro Fernando de Magalhães Furlan, relator do caso. A punição foi a maior já aplicada por um órgão regulador no país: uma multa de 352,7 milhões de reais. Paga, ela será incorporada ao Fundo de Direitos Difusos, usado pela União para promover projetos em áreas como direito ambiental ou do consumidor.
Implantado em 2002, o Tô Contigo era, na essência, um programa de bonificação. Ao venderem produtos da AmBev, seus participantes acumulavam pontos que podiam ser trocados por descontos ou bens como móveis de bar e geladeiras. Em 2004, a Schincariol, rival da AmBev, levou à SDE uma reclamação, baseada no fato de que o Tô Contigo incluía uma cláusula explícita de exclusividade.
Diante da denúncia da Schincariol, a AmBev resolveu mudar de tática. Retirou a cláusula de exclusividade dos contratos – e começou a fazer um jogo ambíguo. Seus vendedores insinuavam que, caso o bar ou restaurante comercializasse outras marcas de cerveja, corria o risco de ser expulso do Tô Contigo. Ainda na fase de investigação, a SDE pediu que o instituto de pesquisas Ibope ouvisse donos de bar a respeito do programa. Nada menos que 50% deles afirmaram que a participação pressupunha exclusividade. Não bastasse a ameaça velada, o programa de bônus era vantajoso para os estabelecimentos. Tanto assim que, depois de 2004, a participação no Tô Contigo cresceu de 5% para 15% do número de bares que compram cerveja da AmBev. Fazer frente a essa situação seria difícil. Com marcas como Brahma, Antarctica, Skol e Bohemia, a AmBev é dona de quase 70% do mercado de cervejas do país. Para romper esse círculo, os concorrentes menores teriam de oferecer vantagens e descontos impraticáveis. "É importante reafirmar também outro princípio envolvido na defesa da concorrência: quando se criam esquemas desse tipo, o consumidor também perde, pois, sem que se dê conta, tem sua liberdade e amplitude de escolha comprometidas", diz Marcelo Calliari, ex-conselheiro do Cade e diretor do Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional (Ibrac).
A multa fixada pelo Cade equivale a 2% do faturamento auferido pela AmBev em 2003 – ano anterior ao da abertura das investigações. Punições desse tipo, segundo a Lei nº 8884 (Lei Antitruste), podem variar de 1% a 30% da receita bruta da empresa condenada. O órgão regulador estabeleceu a pena em 1,5% do faturamento, porque isso representa pouco mais do que a AmBev ganhou com o programa Tô Contigo naquele ano. O valor foi acrescido em 0,5% porque os julgadores enxergaram má-fé na conduta da empresa, o que constitui uma agravante. Um diretor da AmBev se diz surpreso com a punição: "Nosso programa não é baseado em exclusividade. Envolve apenas uma embalagem, a de 600 mililitros. É prematuro falar em próximos passos, mas é bem provável que haja apelação na Justiça".
Ver suas decisões contestadas na Justiça é comum para o Cade. A autarquia julga cerca de 500 processos por ano. Desse montante, aproximadamente 200 vão parar nos tribunais. "No plano administrativo, somos a última instância. Mas, em nosso sistema legal, qualquer assunto pode ser levado à analise judicial. Faz parte do jogo", diz o conselheiro Furlan. Na Justiça, o Cade tem um porcentual de vitória de 70%. Um bom número. Para o ex-conselheiro do Cade e professor de direito da Fundação Getulio Vargas Cleveland Prates, o problema das ações judiciais é de outra natureza. "O drama é que nosso Judiciário pode levar anos para chegar a uma decisão final. Isso não é bom para ninguém, nem para as empresas nem para a sociedade. O tempo econômico exigiria que esse tipo de pendência fosse resolvido de forma mais célere", diz.
Nos próximos meses, a multa milionária aplicada à AmBev pode ser ofuscada por outra. A SDE já pediu a condenação máxima (multa de 30% da receita bruta por empresa e de 40% sobre essa multa para os principais executivos) às fabricantes de gases industriais White Martins, AGA, Air Liquide e Air Products. O caso deverá entrar na pauta de julgamento do Cade – que parece pender para uma condenação. Se for assim, a conta poderá chegar à casa do bilhão de reais.