da Veja
ACERTO DE CONTAS
Compacto e eletrizante, O Grupo Baader Meinhof desmistifica,
lance por lance e integrante por integrante, a trajetória do bando
terrorista que, nos anos 60 e 70, fascinou a juventude alemã
Isabela Boscov
Zuma Press |
LIBERTÁRIOS SÓ NA VIOLÊNCIA Andreas Baader e seus companheiros em uma de suas ações: sociopatia travestida em "causa" |
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• Exclusivo on-line: Trailer do filme |
Entre as décadas de 50 e 70, uma corrente vital se enraizou no cinema europeu e dele se irradiou para o restante do mundo: a dos filmes feitos no espírito da denúncia política e ideológica. Obras como A Batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo, ou Z, de Costa-Gavras, se tornaram referência não apenas por sua qualidade artística, mas sobretudo pela contundência com que desmontavam a versão "oficial" para alguns dos eventos turbulentos do período. É supérfluo dizer que esse cinema vinha alinhado com o pensamento de esquerda: o continente europeu convivia com governos francamente fascistas, como no caso de Portugal e Espanha, ou que ainda não haviam erradicado por completo a herança fascista da II Guerra; a África se encontrava sob regimes coloniais; os Estados Unidos travavam uma guerra ilegítima no Vietnã; Israel e seus vizinhos árabes lutavam com ferocidade; e a América Latina estava tomada por ditaduras. A "história oficial" do Ocidente, portanto, pertencia grosso modo à direita. A esquerda pretendia escrever uma história "alternativa", supostamente mais verdadeira (mas maculada pelo silêncio ou, pior, pela leniência, em relação aos horrores em curso no bloco comunista). E esse é o dado mais estimulante em O Grupo Baader Meinhof (Der Baader Meinhof Komplex, Alemanha/França/República Checa, 2008), desde sexta-feira em cartaz no país: a história "oficial" que o filme desmantela é, desta vez, aquela propalada pela esquerda, que durante décadas mitificou o bando terrorista do título, erguendo seus integrantes de criminosos a mártires libertários.
Em prol da clareza e da boa argumentação, o diretor Uli Edel começa do começo: mostra como uma conjuntura global tão volátil quanto a já descrita calou fundo na primeira geração de alemães após Adolf Hitler, predestinada a enxergar fantasmas fascistas em todo canto. Algumas dessas assombrações eram reais, já que a Alemanha Ocidental não raro se conduzia como um estado policial mais do que como uma democracia. Outros dos fantasmas, como a conspiração imperialista americana, eram imaginação – mas bastaram para radicalizar certos segmentos. Como a Facção do Exército Vermelho, que em seu surgimento, no fim dos anos 60, tinha como líderes Andreas Baader (no filme, o ótimo Moritz Bleibtreu) e sua namorada, a filha de pastor protestante Gudrun Ensslin (Johanna Wokalek). Baader, um sociopata que encontrou na causa marxista-leninista um pretexto para o descontrole, incendiou junto com Gudrun uma loja de departamentos e pôs uma bomba numa grande empresa jornalística, em ações contra o "capital" e os "reacionários" que enfeitiçaram a juventude alemã. Levados a julgamento, conheceram o elemento que transformaria sua agremiação no violentíssimo e notório Baader Meinhof: a jornalista Ulrike Meinhof, uma mulher de classe média bem-sucedida, mãe de duas meninas e que, até o dia em que colaborou para o assassinato de um guarda desarmado e pulou uma janela para correr atrás de Baader, era só mais uma liberal romântica.
Fotos AFP e AP |
Ulrike Meinhof, Andreas Baader e Gudrun Ensslin, o núcleo inicial do grupo: um ideário virulento que resultou em 34 assassinatos |
Na interpretação excelente de Martina Gedeck, Ulrike é a personagem central dessa história. Não apenas por ter virado a ideóloga de fato do Baader Mein-hof, com seus manifestos cada vez mais virulentos, mas por encarnar o apelo desses grupos: a ideia de que, "enquanto os outros falam, nós fazemos". O que na teoria era ação, na prática era crime puro e simples. O Baader Meinhof tem em sua conta 34 assassinatos, alguns cometidos com selvageria. Roubou bancos, jogou bombas e sequestrou. E, sempre que um de seus integrantes perecia numa operação ou era preso, a cúpula do grupo divulgava uma versão dos fatos em que o terrorista aparecia como vítima. Encarcerados no presídio de Stammheim a partir de 1972, com acesso a televisão, rádio e jornais, além de circulação livre entre suas respectivas celas, Baader, Gudrun e Ulrike continuaram a comandar as ações de seus sucessores e a divulgar seu ideário. Ulrike, cada vez mais perturbada, se suicidou em 1976, e os terroristas afirmaram que ela havia sido executada. Baader e Gudrun se mataram no ano seguinte, quando o sequestro de um avião da Lufthansa, planejado junto com terroristas palestinos, não reverteu em sua libertação – mas cuidaram para que também sua morte fosse retratada como assassinato.
Da mesma forma que o diretor Marco Bellocchio se dedicou a revelar as verdadeiras cores das Brigadas Vermelhas em Bom Dia, Noite, o diretor Uli Edel e o produtor Bernd Eichinger (de A Queda – Os Últimos Dias de Hitler) realizam aqui um meticuloso trabalho de desmistificação, apoiado no livro-reportagem publicado em 1985 por Stefan Aust, ex-diretor de redação da revista jornalística Der Spiegel, e em autos de investigações. Detalhar como cada ação foi executada proporciona cenas eletrizantes; e, bem mais ao ponto, esclarece como o grupo agia de maneira bárbara e então manipulava os fatos em seu favor – como é praxe em qualquer regime fascista. Ainda mais surpreendente, contudo, é constatar a pobreza, frivolidade, histeria e egomania da retórica de Ulrike Meinhof e seus companheiros, que a condensação para duas horas e pouco de narrativa torna indisfarçáveis. O Grupo Baader Meinhof não é um filme brilhante como, por exemplo, A Batalha de Argel – mas, pela determinação em trocar a história oficial pela história real, pode ser considerado igualmente indispensável.
Trailer |