Doença mental não é motivo de vergonha, não pode ser estigma para ninguém |
VOLTO AO tema da internação psiquiátrica, já que, no debate que em boa hora se abriu, novas questões surgiram. Um dos aspectos positivos dessa discussão é que, com raras exceções, todos estão interessados na solução dos problemas. É com esse propósito que volto ao tema.
Em conversa pública com pessoas engajadas nessas questões, ouvi de um psiquiatra que uma medida que ajudaria a resolver o problema do tratamento da esquizofrenia seria internar o paciente em hospitais comuns, ou seja, não psiquiátricos.
Ao ouvi-lo, lembrei-me de um caso, que relatei na ocasião. Um senhor idoso, com distúrbios mentais, fora internado num hospital comum e o resultado foi desastroso. É que o referido senhor passava os dias a provocar os demais enfermos, reclamando ou insultando-os, sem qualquer propósito. Os outros enfermos sentiram-se obrigados a exigir que ele fosse retirado de lá, pois o convívio com ele era inviável. O que foi feito.
O médico, então, explicou-me que a ideia não era misturar doentes mentais com os demais internados, mas, em vez disso, criar, nos hospitais comuns, uma ala psiquiátrica. O objetivo, disse-me ele, era evitar o estigma com que a sociedade marca o doente mental e sua família. "Quer dizer, então", observei eu, "que o propósito é fazer de conta que o paciente não é louco, está internado por uma doença qualquer, será isso?". Ou seja, pretende-se criar, dentro dos hospitais comuns, hospitais psiquiátricos secretos, disfarçados de hospitais não psiquiátricos!
Não dá para acreditar. Assim como a lei da chamada "psiquiatria democrática" pretende fazer de conta que doença mental não existe e o esquizofrênico é apenas um dissidente, o hospital disfarçado expressaria o mesmo preconceito da sociedade em face da questão.
Mentiras e hipocrisia não resolvem problema algum. Doença mental não é motivo de vergonha, não pode ser estigma para ninguém, trata-se de uma enfermidade como outra qualquer. O cérebro é um órgão do corpo humano como o coração ou os rins e, por isso, pode adoecer como qualquer um deles. Porque uma de suas funções é produzir pensamentos, se passa a funcionar mal, o cara perde o controle do que pensa, ouve vozes ou sofre alucinações. Aliás, agora mesmo, a revista científica "Nature" deu notícia do maior estudo já feito sobre a esquizofrenia, cuja conclusão é que a doença decorre de mutações genéticas, isto é, tem causas biológicas, como quaisquer outras. Logo, a tese embutida na nova lei brasileira, de que a causa da esquizofrenia está na sociedade, não tem fundamento algum. A doença torna-se um problema social e familiar, devido a sua especificidade, mas é efeito, consequência, não é causa.
A internação psiquiátrica é uma questão a ser estudada com mais cuidado. Limitar as internações ao máximo de três meses é discutível. Na minha opinião, deve durar o tempo necessário, levando-se em conta a situação psíquica e social do paciente.
Já falei aqui do caso de Emygdio de Barros, hoje um nome conhecido da pintura brasileira. Ele estava internado há mais de 20 anos no Centro Psiquiátrico Nacional (CPN), no Engenho de Dentro, quando a dra.
Nise da Silveira criou ali os ateliês de arte e artesanato. Emygdio, que há 23 anos não falava, passou carregando uma trouxa de roupas sujas pelo pátio do hospital, quando foi cooptado por ela e convidado a trabalhar como encadernador de livros. Mas o que ele queria mesmo era pintar e, assim, com esse propósito, fez chegar às mãos do responsável pelo ateliê de pintura alguns desenhos seus.
Eram tão bons que ele foi atendido imediatamente e passou a pintar sem cessar. Em breve, seu talento era reconhecido por artistas e críticos de arte.
Certo dia, porém, manifestou a vontade de voltar para casa, no que foi atendido. Ficou dez anos com a família que, muito pobre e desinformada, não o estimulou a pintar. Foi assim que, inesperadamente, bateu às portas do gabinete da dra. Nise, de maleta na mão, informando-a que desejava reinternar-se no hospital.
"E por quê?", perguntou ela. "Porque quero voltar a pintar", respondeu ele. E ali ficou, pintando, até os 80 anos, quando foi transferido para um asilo de idosos.
Cabe, então, uma pergunta: o que teria acontecido com Emygdio se, naquela época, já vigorasse a lei de hoje, que inviabiliza as internações e, particularmente, as de longa duração?
Filho de família paupérrima, do interior do Estado do Rio, teria certamente terminado na rua e morrido como mendigo. O que o salvou foi a internação no CPN do Engenho de Dentro. Dá para pensar, não?