Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 18, 2009

Cinema O Guerreiro Gêngis Khan, de Sergei Bodrov

OS LOBOS DA ESTEPE

Pode-se ver O Guerreiro Gêngis Khan apenas como um belo épico 
sobre o legendário conquistador mongol. Mas se pode também 
enxergar nele o desejo do diretor Sergei Bodrov de que a Rússia 
de hoje se alce da desordem ao poder


Isabela Boscov

Foto Divulgação

DA TRIBO PARA O MUNDO
O ator japonês Tadanobu Asano, como o mongol Gêngis Khan, e seu exército: herdeiro usurpado, escravo, fugitivo – e então fundador de um império colossal

 

VEJA TAMBÉM

Se, como muitos acreditam, o épico é uma arte finada, então o russo Sergei Bodrov acaba de contribuir com um impulso valente para ressuscitá-la. Em O Guerreiro Gêngis Khan(Mongol, Rússia/Cazaquistão/Mongólia, 2007), que estreia no país nesta sexta-feira, o diretor se vale de um tema típico do gênero – o da figura histórica que realizou feitos incalculáveis (leia-se, conquistou vastas extensões territoriais e matou muita gente) – para tirar dele um filme tão grandioso quanto curioso. Bodrov reafirma sem nenhuma reserva a tradição cinematográfica que o inspirou: o que não falta aqui são batalhas tremendas, cavalgadas em câmera lenta e paisagens dramáticas, fotografadas com o apuro formal que outra tradição – no caso, a das artes visuais russas – aprimorou. Ao mesmo tempo, o diretor inclina essas tradições em um ângulo inesperado, que autoriza a enxergar aqui uma confluência forte entre reverência e heresia.

Gêngis Khan narra a ascensão do menino Temudjin, filho de um dos inúmeros chefes tribais que nos séculos XII e XIII repartiam, com muita má vontade mútua, as estepes da Mongólia, até sua metamorfose em khan, ou líder supremo, dos mongóis e formador de um império que, com seus descendentes, logo viria a abarcar metade do mundo então conhecido. Na historiografia ocidental, e também na russa, o nome Gêngis é virtualmente sinônimo de ferocidade e rapacidade, e só pela simpatia que Bodrov dedica a ele o filme já seria surpreendente. Mas há muitos outros elementos dissonantes em jogo aqui. Por exemplo, a opção pelo naturalismo no tratamento de um gênero que é antinaturalista por excelência: Gêngis Khan é repleto de entreatos, em que Bodrov pouco faz além de observar seus personagens – muitos interpretados por não atores. A trilha sonora também rejeita a exaltação de praxe, trocando-a pelos sons estranhíssimos e angustiantes do canto gutural mongol. E, da mesma maneira que se move com veemência sempre que se move, o filme é capaz de longas pausas que não são prenúncio de nenhuma ação, ao contrário do que acontece, por exemplo, em uma produção como Lawrence da Arábia. O que realmente convida à indagação em Gêngis Khan, entretanto, é o simples fato de ele existir – e de Bodrov ter investido tanto de si nesta história (que ele planeja transformar em trilogia).

A vida de Gêngis Khan é razoavelmente bem documentada, mas Bodrov nem sempre segue os registros. O que interessa ao diretor é que, em síntese, Temudjin se ergueu de um sistema social nomádico e primitivo, e de um infortúnio – o assassinato do pai, quando ele tinha 9 anos – que o condenou a uma juventude de escravidão, fugas e penúria, para dominar o mundo. A maioria dos cineastas do que foi o império soviético enfrenta em algum grau uma divisão íntima, decorrente de sua história tão conturbada, entre o movimento e a estase, entre avançar e rememorar, entre comemorar e lamentar. São dilemas que acometem artistas que só filmaram sob o comunismo, e também os mais jovens, que começaram quando o regime já havia ruído.

Para a geração de Bodrov, que tem 61 anos e fez filmes antes e depois do fim da União Soviética, essas fraturas chegam a ser críticas. A crise, eventualmente, é benéfica à criação. Quando há talento, como no caso de Bodrov, ela faz surgir filmes extravagantes, conflituosos e ricos como O Guerreiro Gêngis Khan. Entre os bons trabalhos do diretor está, por exemplo, O Prisioneiro da Montanha, sobre um velho checheno que quer trocar dois soldados russos por seu filho capturado; Bodrov não é defensor de um regime nacionalista e tirânico, mas um artista disposto a trazer à tona o que esse regime gostaria de manter submerso. Aqui, porém, a despeito de suas convicções, ele trai talvez involuntariamente a nostalgia funda dos seus compatriotas por uma grande Rússia. Espelhando-se na trajetória de um indivíduo, desafia os que descartam esse ex-império hoje tão reduzido a escombros e cindido por separatismos como um lobo que perdeu seu lugar na matilha. Temudjin, órfão de figura paterna e de liderança, extraviado entre clãs inimigos, derrotou não só outros lobos como matilhas inteiras. É como o vê Bodrov, ele próprio magnificamente extraviado entre um passado e um presente que, desconectados um do outro, só têm a oferecer aos russos insatisfação.

Foto Everett Collection/Grupo Keystone

 

 

Trailer

 


Arquivo do blog