Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 18, 2009

Livros A Joia de Medina, de Sherry Jones

A liberdade ofende

Um romance sobre uma das mulheres de Maomé é o mais 
recente alvo do cerceamento dos fundamentalistas – e de 
seus cúmplices esquerdistas – ao direito de expressão


Nelson Ascher

Gustavo Cuevas/EFE
BARRIL DE PÓLVORA Sherry Jones: a pressão contra seu livro começou antes da publicação, cancelada por sua primeira editora


VEJA TAMBÉM

Aisha, uma jovem que teria vivido durante o século VII na atual Arábia Saudita, foi, segundo as fontes reconhecidas pelos muçulmanos, a terceira mulher de Maomé, fundador de sua religião, o Islã. Foi seu pai que, tornando-se sucessor imediato de Maomé, inaugurou a disputa na qual se opõem os sunitas, que aceitam essa linhagem, e os xiitas, que consideram Ali, primo e genro do profeta, seu legítimo sucessor. A Joia de Medina (tradução de Ana Luiza Dantas Borges; Record; 434 páginas; 39 reais), da americana Sherry Jones, romanceia a vida dessa personagem central da narrativa islâmica. É uma incursão despretensiosa por épocas, lugares e entre pessoas das quais se sabe pouco. Nada aqui fugiria do corriqueiro não fosse a escolha da protagonista. Jones poderia ter optado pela mulher de um profeta bíblico, de um imperador romano ou chinês ou do rei Arthur – e nenhuma dessas opções teria lhe trazido problemas. Lidar, porém, com a narrativa sagrada do Islã – e tanto faz se isso é feito com erudição ou leviandade – é se submeter a consequências imprevisíveis. A obra pode ser ignorada e esquecida ou pode acender barris de pólvora em cantos inesperados do planeta.

No caso deste romance, nem chegaram a ser necessárias as reações públicas. A megaeditora americana Random House comprou, em 2007, os direitos desse e de outro livro da autora por 100 000 dólares. Com as provas prontas, mandou-as a vários possíveis resenhistas, entre eles Denise Spellberg, professora de Estudos Islâmicos na Universidade do Texas, que soou o alarme de que havia, prestes a sair, um livro que zombava dos muçulmanos e de sua história. Com a pressão contra o romance crescendo internet afora, a editora cancelou a publicação, que afinal foi assumida, nos Estados Unidos e Inglaterra, por editoras menores. Em setembro de 2008, a casa de Martin Rynja, da editora britânica Gibson Square, foi atacada com bombas incendiárias. E já se iniciou pela internet uma campanha no Brasil contra a versão nacional do livro.

A insanidade que tem levado palavras ditas ou impressas, desenhos e caricaturas a desencadear reações violentas começou oficialmente quando, em 1989, o aiatolá Khomeini, do Irã, proclamou uma fatwa contra o recém-publicado Os Versos Satânicos e seu autor, Salman Rushdie, que ele condenava à morte. Se, então, os progressistas em geral e a comunidade artístico-literária em particular se uniram na defesa do escritor, conforme os casos foram se repetindo as reações mudaram – até que, durante a crise das charges de Maomé que, publicadas em 2005 num jornal dinamarquês, resultaram em protestos exaltados entre populações islâmicas, a intelectualidade e a esquerda, quando não se calaram, tomaram o partido daqueles que exigiam a censura.

Arif Ali/AFP
DESAVENÇAS INCONCILIÁVEISManifestantes queimam bandeira da Dinamarca em protesto contra charges de Maomé: as verdades de uma religião podem ser ofensivas para as outras


Por estranho que soe, respeitar as sensibilidades dos seguidores de uma e apenas uma religião se converteu em algo politicamente correto. A esquerda, que, herdeira secularista do iluminismo, criticou sempre o conservadorismo religioso, tem reagido de forma tíbia e, às vezes, até endossado as limitações crescentes que fanáticos e parte do clero muçulmano buscam impor às sociedades abertas do planeta. Talvez o enigma se explique devido ao fato de que, na mitologia terceiro-mundista atual, o Islã é a fé dos novos oprimidos, os que assumiram o papel há muito descartado pelo proletariado industrial.

Acontece que a liberdade de expressão é direito fundamental numa sociedade moderna e democrática. Há milhares de religiões no mundo, e aquilo que numa delas é verdade indiscutível não raro é falsidade ofensiva para as demais. Como conciliar tais desavenças? Há duas maneiras: impondo uma crença uniforme (ou a descrença) a toda a coletividade ou mantendo a religião confinada à esfera privada, liberando de forma igualitária todos os pontos de vista. Dizer o que quer que seja sobre uma religião e seus personagens mitológicos ou históricos não equivale, de modo algum, a atacar seus fiéis. Apesar de tudo, o conflito de civilizações talvez seja realmente inevitável, não porque a modernidade não tolera gente, grupos, mesmo nações apegadas a tradições reais ou inventadas, mas porque estes se consideram ameaçados (e, pior, seduzidos) pelas sociedades liberais e avançadas.





LIVROS  

Trecho de A Joia de Medina, de Sherry Jone

1 Beduínos no deserto 
Meca, 619
 
6 anos

Foi o meu último dia de liberdade. Mas teve início mais ou menos 1.001 dias antes disso: um raio de sol e o meu grito de alarme, atrasada de novo, o salto de minha cama, a fuga pelos cômodos sem janelas da casa do meu pai, minha espada de madeira na mão, meus pés descalços batendo no piso frio de pedras,estou atrasada estou atrasada estou atrasada.

Lampiões tremeluziam sua luz fraca nas paredes, uma pobre substituta do sol que eu amava. Quando passei pela cozinha, o cheiro forte e fermentado de mingau de cevada me enjoou. Mais rápido, mais rápido. O Profeta vai chegar logo. Se ele me vir, vai querer brincar, e sentirei falta de Safwan.

Mas eu devia saber que minha mãe me encontraria. Ela era mais vigilante que o demônio.

— Aonde pensa que está indo? — gritou ela quando, no meio do caminho, dei de encontro com a parede sólida formada por seu corpo com as mãos nos quadris.

Eu ia recuar, recuperar o fôlego e contorná-la, mas ela me agarrou com mãos fortalecidas por anos fazendo pão. Seus dedos seguraram meus ombros como garras de um falcão. Ela correu os olhos como mãos rudes sobre meu cabelo emaranhado pelo sono, minha camisola cor de areia marcada como um mapa da brincadeira do dia anterior: borrões arredondados onde eu havia me ajoelhado na terra, escondendo-me de inimigos beduínos. Um rasgão na manga causado na luta contra meus captores, Safwan e nossa amiga Nadida. Manchas vermelhas do suco de romã da refeição da véspera. Riscos de poeira da pedra imensa que Safwan e eu tínhamos rolado, silenciosamente, para debaixo da janela do nosso vizinho Hamal, o mais novo recém-casado de Meca.

— Você está imunda — disse minha mãe. — Não vai sair de casa desse jeito.

— Por favor, ummi, estou atrasada! — repliquei, mas ela chamou minha irmã.

— Nenhum filho meu vai a lugar algum parecendo um animal selvagem — disse ela. — Vá vestir uma roupa limpa e se encontrar com Asma no pátio. Ela vai domar esses seus cabelos desordenados enquanto busco água para lavar o cabelo da rainha de Sabá.

Ela estava se referindo à sua irmã de harém, Qutailah. Hatun de meu pai, a "Grande Dama", ou primeira esposa, Qutailah distribuía todas as tarefas no harémAlta, pele morena, e cada vez mais gorda, ela invejava a pele clara e as mechas ruivas e revoltas de minha mãe, além de temer seu gênio temperamental. Desse modo, Qutailah estava sempre lhe lembrando quem era a primeira na casa, chamando minha mãe de durra, ou "papagaio", o nome para a segunda esposa. E designava à minha ummi as tarefas que geralmente cabiam às criadas, tais como puxar imensos alforjes de couro cheios de água do poço de Meca. Era uma tarefa humilhante, pois o poço de Zamzam fi cava no centro da cidade e todos podiam ver minha mãe voltando para casa irritada, com os alforjes pendendo de uma vara sustentada em seus ombros estreitos, respingando água. Enfrentar esse trabalho sempre deixava minha mãe mal-humorada. Não era a hora apropriada para discutir com ela.

— Ouvir e obedecer — eu disse, fazendo uma mesura, mas quando ummidesapareceu, de volta ao escuro, escapei para a cozinha. Nossa vizinha Raha, sentada em um canto na sombra, se abanava com uma palma de tamareira. Ao me ver, sorriu, mostrando suas covinhas, e tirou de sua sacola uma romã tão brilhante e vermelha quanto suas bochechas.

— Mas primeiro tem de me dar um beijo — me provocou, quando tentei pegar a fruta da sua mão. Sentei-me em seu colo só por um instante, o tempo sufi ciente para pressionar meu rosto no dela e sentir o cheiro de alfazema no cabelo trançado. Ela esfregou a ponta do seu nariz na ponta do meu, me fazendo rir e esquecer minha pressa, até Asma entrar. Parti a romã ao meio, sem me importar com as sementes que caíam no chão, fazendo um barulhinho como o de água, enquanto disparava porta afora, escapando das mãos de minha irmã.

— Yaa A'isha, aonde está indo? — ouvi Asma chamar, como se ela não soubesse a resposta. Ela e Qutailah, sua mãe, estavam sempre me repreendendo por causa da minha "obsessão" por Safwan. Ele só vai lhe causar problemas. Brincar com seu futuro marido incita o mau-olhado.

Fugi, ignorando os gritos de minha irmã, agitando minha espada de brinquedo, levantando a areia quente e macia ao passar pela confusão de casas altas de pedras escuras, com terraços, entradas em arcadas e telhados de palmas descoradas pelo sol; casas amontoadas, que me observavam como velhos fofoqueiros com falhas nos dentes. Para além delas, a caravana de Meca avançava pela cordilheira, rochosa aqui e ali, sob o olho implacável do sol.

Encontrei Safwan abraçado com Nadida dentro da tenda de brinquedo dela, falando em sussurros.

— Marhaba, pombinhos — falei. O rosto comprido e fino de Nadida enrubesceu. Comecei a rir, mas Safwan deu um pulo e me puxou para dentro da tenda.

— Silêncio! — falou ele, irritado. — Quer que nos ouçam? — Indicou com um movimento da cabeça a janela do recém-casado Hamal e, debaixo dela, a pedra que tínhamos rolado para lá na noite anterior.

— Eles estão lá, agora — disse Nadida. — Você tinha de vê-la. Tem a minha idade e se casou com aquele bode velho. — Tocou na pequena fi gura vermelha que pendia de um cordão em seu pescoço. — Que Hubal me proteja do mesmo destino. — Naquele tempo, seus pais ainda adoravam ídolos, não o Deus de verdade, como eu e Safwan fazíamos.

Safwan pôs um dedo nos lábios e puxou uma de suas orelhas grandes, escutando. Um grito agudo, penetrante, como o lamento das carpideiras de Medina, me arrepiou. Em seguida, ouvimos o resmungo de um homem, e sua risada tão áspera quanto pele arranhada.

— Por Alá, ele a está matando? — perguntei.

Safwan e Nadida abafaram um risinho.

— Ela provavelmente queria estar morta — respondeu Nadida. Safwan foi até a entrada da tenda e fez sinal para que eu o seguisse. Agachados, fomos em silêncio até a grande rocha. Safwan levantou o pé para subir nela, e um gemido alto vindo lá de dentro me atordoou: esse Hamal era um gigante. Se nos pegasse olhando, nos esmagaria com uma só mão. Puxei a manga de Safwan, mas ele se soltou e espiou pela ponta da janela, depois sorriu com malícia para mim.

— Venha — sussurrou ele. — Não aja como um bebê. — Estendeu a mão para me ajudar a subir, mas subi depressa como um lagarto, ignorando as batidas do meu coração, que, tinha certeza, seriam ouvidas por Hamal. Quando meus olhos se ajustaram à penumbra lá dentro, consegui ver somente roupas espalhadas pelo chão, depois bandejas com comida pela metade, pratos sujos e um narguilé caído de lado. O cheiro de cevada, carne deteriorada e maçã apodrecida misturavam-se ao odor úmido de suor.

Um gemido grave e regular atraiu meu olhar para a cama. Um fio de suor escorria pelas costas largas e nuas de Hamal enquanto ele erguia e depois baixava o corpo na cama, com força, repetidamente. Olhei espantada para o seu traseiro coberto de pelos, tão grande quanto a bexiga de um bode, enquanto ele o tensionava e relaxava, a cada impulso. Por baixo o velho, braços e pernas muito fi nos se projetavam como as patinhas de um besouro debaixo de uma sandália, se debatendo e tentando segurá-lo. Uma voz de menina parecia soluçar, e seus calcanhares batiam nos quadris dele. Arfei e segurei o braço de Safwan: ele aestava matando!

Mas ao olhar para Safwan, ele estava sorrindo largo, e quando a voz de Hamal foi soando mais alta e seu corpo batendo mais rápido, Safwan me fez abaixar. Sem sermos vistos por eles, ouvimos Hamal gritar "Ai! Ai! Ai!", como uma hiena. Tapei minha boca com a mão e olhei assustada para Safwan, mas ele estava reprimindo o riso. Fingi rir também, sem querer que ele percebesse o meu horror, enquanto a imagem do corpo da menina espremido debaixo daquele animal peludo não saía da minha cabeça.

Recostei-me na parede, tentando manter a respiração regular e rezando para que Safwan não ouvisse meu estômago se revirando. Um dia eu me casaria com ele — e faríamos isso? O seu sorriso era feroz, seus olhos pareciam debochar de mim, como se estivesse pensando no mesmo. Mas, ao contrário de mim, parecia gostar da ideia. É claro, ele seria aquele que esmagava, enquanto eu seria a pobre menina embaixo, soluçando e agitando meus braços e pernas.

— Isto é o casamento, A'isha — disse ele num sussurro, e tive vontade de fugir. Pensei na minha mãe: não era de admirar que quase sempre estivesse de cara feia.

E então, como se eu a tivesse invocado, ummi surgiu virando a esquina, sua túnica escura esvoaçante como asas de um corvo agitado.

— O que está fazendo aqui? — berrou ela. Gritos vindos de dentro do quarto a fizeram olhar para cima, para a janela, e ela deu um grito esganiçado, como se tivesse sido queimada. Olhei para Safwan, mas o seu lugar na pedra estava vazio. Ele tinha desaparecido como um djinni, me deixando enfrentar sozinha os insultos furiosos de minha mãe. Não somente eu a tinha desafi ado saindo de casa sem me lavar, como ela havia me encontrado na janela do quarto de Hamal ibn Affan, com o atordoamento e o medo tateando, como mãos, o meu rosto. Sorri para ela, a imagem pura da inocência, imaginei. Seu rosto pareceu se partir e se refazer, como pedaços de massa de pão.


Copyright © Editora Abril S.A. - Todos os direitos reservados

Arquivo do blog