Nos tempos recentes: déficits gêmeos estruturais nos EUA; superávits comerciais estruturais de emergentes, especialmente da China; superaquecimento dos mercados de commodities, especialmente de petróleo e metais; embelezamento de ativos com alta propensão ao derretimento, especialmente hipotecas nos EUA; booms imobiliários especulativos e estruturas regulatórias insuficientemente adequadas a novos instrumentos financeiros. Nos anos 20: convivência de reparações de guerra com dívidas de guerra entre os vitoriosos; instabilidade macroeconômica na Europa, especialmente entre os derrotados; excesso de oferta de commodities e sustentação artificial de preços; "rigidez" no mercado de trabalho; inconsistência entre as políticas financeiras dos EUA, França e Grã-Bretanha; sobrevalorização de moedas e tensões relacionadas ao gold exchange standard (padrão ouro de câmbio).
Ações compensatórias nacionais e regionais parecem ter debelado a ameaça de derretimento financeiro. Um sinal de ação coordenada efetiva, utilizando canais tradicionais, foi o lançamento de um programa do Fundo Monetário Internacional (FMI) de empréstimos de emergência de curto prazo a países com boa história de gestão macroeconômica. A isso se soma a iniciativa do Federal Reserve (Fed) de prover liquidez em dólares, por meio de swaps cambiais, a alguns países de importância estratégica, entre os quais o Brasil.
A idéia de que o impacto da crise financeira atual sobre a economia real tenha semelhança mesmo que remota com o da crise de 1929 é o que agora tira o sono dos governantes no centro e na periferia da economia mundial. Quedas do PIB de 30% em algumas economias desenvolvidas - como nos EUA, entre pico e vale, em 1929-1933 - e de 5% no Brasil, no mesmo período, não se repetirão, mas quedas significativas do nível de atividade no centro do sistema não podem ser descartadas nos próximos semestres - talvez combinadas com crescimento muito baixo ou estagnação entre os emergentes de crescimento relativamente lento, como é o caso do Brasil.
O temor das conseqüências da crise sobre a economia real, combinado com o seu protagonismo, tem exacerbado a hiperatividade de alguns líderes em meio à crise, especialmente do presidente francês, Nicolas Sarkozy, temporariamente presidente da União Européia. Sobram razões para temer que o protagonismo possa acabar sendo contraproducente. É incerto qual poderá ser o resultado substantivo da reunião de líderes do G8 com os do G20, em Washington, no próximo dia 15. Após as eleições, o presidente George W. Bush será então um morto-vivo político, ainda mais morto do que hoje. Será que o novo presidente dos EUA - que será eleito amanhã - se sentará também à mesa? E os novos responsáveis pela política econômica e financeira dos EUA? Se o novo presidente for John McCain, antecipa-se a dificuldade dos mercados em absorver more of almost the same (mais de quase o mesmo). É como se Herbert Hoover ganhasse a reeleição em 1932, derrotando Franklin D. Roosevelt. Mesmo com a vitória de Barack Obama, é improvável um resultado significativo. E a explicitação das dificuldades pode ser ter conseqüências perigosas em mercados excessivamente voláteis.
Sarkozy, em meio a manobras para assegurar a extensão de seu mandato de facto como presidente da "Europa" - dado que os dois próximos presidentes de jure serão de países fora da zona do euro -, tem insistido na necessidade de "reformular Bretton Woods", ignorando o contraste essencial entre a situação em Bretton Woods e hoje. Em 1944, não havia dúvida quanto à posição hegemônica dos EUA. A arquitetura financeira lá acordada - essencialmente sobre regimes cambiais e sua sustentabilidade - foi proposta pelos EUA e prevaleceu, não obstante as resistências de Keynes.
Qualquer que seja a "reformulação" que se pretenda, vai ser preciso aprender como assegurar ação coordenada sem a regência de um protagonista hegemônico. Os que vêem como conseqüência da atual crise o fim da hegemonia dos EUA e, conseqüentemente, o aumento do poder de barganha de emergentes - tanto do ponto de vista econômico quanto político - deveriam levar em conta o retrospecto histórico. Em especial, o período que marcou a transição da combalida hegemonia britânica pré-1914 para a hegemonia norte-americana após a 2ª Guerra Mundial. A evidência indica que cada caso foi um caso e que alguns "emergentes" se deram bastante mal em meio a rivalidades entre os grandes.
Há clamor generalizado por um novo New Deal, um banzo rooseveltiano com laivos de sebastianismo. Mas as políticas coordenadas substantivas que irão além da contenção do pânico financeiro estão ainda pouco nítidas. Se a ação coordenada global evitar a adoção de políticas econômicas, financeiras e comerciais do tipo "dane-se o meu vizinho", como ocorreu na década de 1930, já terá alcançado objetivo importante.
Ainda não é o fim do "neoliberalismo", como torcem alguns, mas a economia real ainda vai piorar bastante antes de melhorar. E estamos longe de começar um processo de reconstrução do marco regulatório do sistema financeiro que minimize o risco de recorrência de "tsunamis".
*Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-RJ