De Emma a Amy
De Emma a Amy, a vida das mulheres passou pelas maiores transformações; elas, que sempre foram tão mais perspicazes que os homens, avançaram muito. Mas nem tudo mudou. Quando lemos sobre grandes mulheres modernas como Lou Andreas Salomé, Coco Chanel ou Gala, encontramos dilemas muito parecidos sob modos de vida que chocariam Madame Bovary - ou a nossa Capitu. Sim, porque Dom Casmurro é como se fosse a história de Flaubert contada por Charles, o marido que não entende o que sentem as mulheres por baixo de sua dissimulação e obliqüidade. Sua vaidade de filhinho carola o impede de encarar, mais do que a provável traição com Escobar, o mundo interior que ela tem a revelar, o mar de experiências e sensações que aqueles olhos sugerem.
Hoje, ao ver as moças vestidas com roupas poderosas e óculos que cobrem meio rosto e dirigindo carrões SUV como se atravessassem Kosovo no auge da guerra, num primeiro momento Emma e Capitu talvez pensassem que seu triste fim não foi em vão. No segundo momento, perceberiam que o equilíbrio entre praticidade e aventura não é tão sólido assim. Pois o tédio também mudou de forma, ou multiplicou as suas. O que antes era cobrança para ser a estável dona de casa é agora uma miríade de pressões para que seja bem-sucedida, fashion, magra, bem informada, sexy, independente e... a estável dona de casa. Aí estão os comerciais de margarina que não me deixam mentir.
Não foi diferente com mulheres brasileiras modernas, responsáveis por abrir caminhos muito importantes. Quando lemos as memórias de Danuza Leão ou a biografia de Leila Diniz por Joaquim Ferreira dos Santos, que acaba de ser publicada (coleção Perfis Brasileiros, Companhia das Letras), vemos que sua atitude libertária contrasta com seus amores doídos e, mais importante, com a própria insistência em fazer sua vida girar em torno dos homens o tempo todo, até mesmo em prejuízo das carreiras. Veja a vulnerabilidade de outra libertária da contracultura, Eddie Sedgwick, a amiga chique de Warhol (Sienna Miller no filme Factory Girl), tão descolada e drogada quanto Amy.
Há certa ingenuidade nessa angústia; por mais conscientes que as mulheres sejam de como eles podem ser bobos (e de como elas mesmas podem ser chatas), continuam a se projetar em ideais. A sensação que tenho às vezes é a de que todas - mesmo as que reúnem em boas doses essas supostas qualidades - sonham ser a Angelina Jolie, a princesa que casou com o príncipe Brad Pitt. Rita Hayworth notou que os homens iam dormir com Gilda e acordavam com Rita. Hoje é o caso de dizer que nem mesmo Angelina é uma mulher como Angelina Jolie.
Para dar outro exemplo, Carla Bruni, a charmosíssima cantora e modelo que aos 40 anos se casou com o presidente da França e se tornou um símbolo mundial de elegância e comportamento, diz numa das canções melosas de seu último CD: "Você é meu vício, a teus pés deposito minhas armas." O mesmo vale para Amy, que diz ser "maternal" com os amigos e escreve excelentes versos como "Você volta para ela/ Eu volto para nós". Quer saber? Acho isso muito bonito. Desde os trovadores do século 12 os homens cantam seus amores para elas; nada mais justo que elas cantem de volta agora, em vez de cair no ódio feminista aos homens. E pelo menos Bruni não parece o tipo de mulher que, como Amy, fica chorando por seu homem no chão da cozinha. Mas o fato é que, em média, elas ainda querem do marido o fim de todo o tédio.
É a principal e talvez única desvantagem sua em relação aos homens: elas não sabem ser objetivas em tais assuntos. Eles ainda se apaixonam mais rapidamente e elas ainda se desapaixonam mais lentamente. Elas sofrem mais com o desencanto, levando a admirável inquietude feminina a se confundir com a dolorosa insatisfação feminina. E fingem não ter tanto interesse pela beleza masculina na hora de justificar que namorem velhos feios e ricos, mas têm ataque histérico quando encontram um bonitão da TV.
Mesmo com a juventude atual ensaiando relações casuais, em que o sexo não é necessariamente o mesmo que o amor, poucas mulheres cedem aos impulsos como gostariam. Como diz Fabrício Carpinejar nas ótimas crônicas de Canalha (Bertrand Brasil), "a autoridade é secularmente feminina". Eu acrescento: a liberdade, não. Como sua antiga exigência pelo homem perfeito não é nem pode ser atendida, elas descambam em consumismo e cinismo ou em solidão e caretice, muitas vezes em tudo isso junto. A dificuldade em vencer o tédio sem perder o eixo persiste. Não é homem que está em falta. É leveza.
DE LA MUSIQUE
Pronto, encontrei dois CDs para indicar com entusiasmo. O primeiro é de uma cantora brasileira que eu desconhecia, Marcia Lopes, se chama Bonita e tem 13 das canções que mais curto, entre elas: Joana Francesa, de Chico Buarque, a melhor trilha sonora para namorar já composta no Brasil; Moon River, de Henry Mancini e Johnny Mercer; The Nearness of You, de Hoagy Carmichael e Ned Washington; Sabiá, de Tom Jobim e Chico; Coração Vagabundo, de Caetano Veloso; Boneca de Peixe, de Ary Barroso e Luiz Iglésias ("da cor do azeviche/ da jabuticaba..."). Marcia Lopes - que dedica o CD a Roberto Rodrigues, do Música Ligeira, precocemente morto - tem uma voz que é nítida como cristal, não parece fazer esforço nem nas notas mais altas e não quer imitar ninguém; mais importante, sabe o que está cantando. Só acho que em Quem te Viu, Quem te Vê, de Chico (são quatro dele ao todo), falta um pouco da picardia da letra (que algum dia ainda vai ser gravada em ritmo de tango). Os arranjos de Mário Manga são ótimos, com destaque para o de She?s Leaving Home, de Lennon e McCartney, que Marcia Lopes canta com toda a tristeza e ironia que a canção pede.
O outro é do grande Diego el Cigala, Dos Lágrimas, que precisei pedir para um amigo trazer da Espanha. Bebo & Cigala, que gravou com Bebo Valdez há alguns anos, é extraordinário, e o novo CD não está à sua altura. Mas é muito bom. Com sua voz rascante de cantor de flamengo, Cigala interpreta canções cubanas como Dos Gardenias e Maria de la O, conseguindo fazê-las de modo não convencional; brilha muito em História de un Amor, de Carlos Eleta; e ainda consegue desbreguizar Caruso, de Lucio Dalla. Há tanto modos de transmitir emoções além do sentimentalismo.
POR QUE NÃO ME UFANO (1)
Paulistanos não raro são acometidos de um mal que poderia ser batizado como Síndrome da Overdose Cultural. Essa SOC se manifesta especialmente no mês de outubro, quando eventos como Mostra Internacional, Bienal de Arte e TIM Festival ocorrem juntos, além de outros. Mas nem tudo que é bom para a cidade é bom para você. O antídoto é deixar de lado as manchetes sobre os 700 filmes ou o "último hype internacional" e relembrar que as coisas realmente boas são minoria. Quase todos os melhores filmes da Mostra entram em circuito comercial pouco depois, como os dos irmãos Coen, irmãos Dardenne e Woody Allen, a Bienal está literalmente vazia e quem brilhou no festival foi o veterano Sonny Rollins. E o teatro? São 132 espetáculos, mas difícil salvar uma dúzia. Quantidade gera... quantidade.
POR QUE NÃO ME UFANO (2)
Disseram que a cidade estava "dividida", que a Marta era preferida pela periferia pobre e Kassab pelos bairros nobres. Mas ela tomou uma lavada, perdendo por mais de 20 pontos de diferença - inclusive em bairros antes tidos como redutos do petismo, exceto apenas a Tattolândia. Sim, Kassab teve melhor campanha e Marta bateu no teto da rejeição, mas, embora ela tenha tentado acusá-lo de ter feito muito pouco além do Cidade Limpa - no que estava parcialmente correta -, o fato de ele não ter feito obras faraônicas como os túneis que ela fez na Rebouças contou a seu favor, não contra ele. E é verdade que os corredores de ônibus (mal desenhados) e os CEUs (caros, mas sem conteúdo melhor) foram menos importantes do que ela pensa. Isso não quer dizer que ele não precisa mostrar mais serviço, não só em transportes e educação, mas também em "ler" as vocações da cidade e recuperar bairros que as perderam. Volto ao assunto.
Aforismos sem juízo
O ser humano transforma metáfora em mito e confunde nome com substância.
''Mesmo conscientes de que os homens são bobos, as mulheres continuam a se projetar em ideais''
''Kassab também precisa ?ler? as vocações da cidade e recuperar bairros que as perderam''