Entrevista:O Estado inteligente

domingo, novembro 02, 2008

Augusto Nunes-SETE DIAS


Um réu disfarçado de vítima

O Brasil anda tão imbecilizado que convém seguir o conselho de Millôr Fernandes: quem vai fazer uma ironia deve primeiro avisar que vai fazer uma ironia. É isso aí, informa a reação de José Dirceu ao artigo O Rio resgatou o direito de sonhar, publicado em 22 de outubro na coluna Coisas da Política. A certa altura, sugeri que ele disse as mesmas palavras ("Volto já") tanto ao sair da sala da reunião que não houve com Fernando Gabeira quanto ao sair da casa onde morou com Clara Becker. Dirceu correu a esclarecer, em outro texto encaminhado ao Jornal do Brasil , que não foi bem assim. Quem mandou esquecer o aviso do Millôr?

Dirceu anda meio lento, confirma o restante do palavrório intitulado Uma desrespeitosa invasão de privacidade (pág. A16). O ex-primeiro-ministro de Lula demorou quase cinco anos para sentir-se injuriado pelo artigo que, essencialmente, repete o que escrevi em 19 de fevereiro de 2004 na página 12 do JB. Durante quase cinco anos, com outro nome e outro rosto, ele viveu e teve um filho com Clara Becker, registrei. O episódio transformou José Dirceu de Oliveira e Silva no protagonista de um clássico na arte da dissimulação.

"Carlos Henrique Gouveia de Mello, proprietário da loja de roupas O Magazine do Homem, namorava uma bonita jovem que tinha, além de cabelos louros e olhos azuis, a melhor butique da cidade", afirmei em 2004 e repito agora. "Acabou ganhando o apelido de Pedro Caroço, personagem de um sucesso musical da época que estava sempre ‘de olho na butique dela’".

Então chefe da Casa Civil, Dirceu também ocupava havia um ano, por decisão do presidente, o posto de "capitão do time, aquele que fala com o juiz". Poderia ter conversado com algum juiz de direito e processado criminalmente o jornalista que violara sua privacidade. Mas não viu nada demais em nenhuma das contribuições à biografia não autorizada de José Dirceu.

"Só em 1979", lembra uma delas, "Cruzeiro do Oeste descobriu que abrigara o líder estudantil banido em 1969, depois de libertado em troca do embaixador americano, exilado na França e diplomado em guerrilha na temporada em Cuba. Só então Clara Becker soube que o homem com quem vivera nunca existiu. Foi só um disfarce do mestre da dissimulação".

O tom e o conteúdo do artigo desta semana sugerem que Dirceu incorporou os disfarces de marido afrontado, pai ferido, inocente indignado e amante da paz entre os homens. Não vai recorrer à Justiça. Só insinua que, se quisesse travar polêmicas "nos níveis pessoal e familiar", teria balas na agulha. Pois deveria usá-las. Basta assegurar-se de que não está escorregando de novo em leviandades, o que engrossaria o prontuário já alentado.

O item mais vistoso da folha corrida é o processo movido pelo STF, com base na denúncia do procurador-geral da República, que acusa Dirceu de ter chefiado a "organização criminosa sofisticada" que articulou o mensalão. Como isto é o Brasil, o réu vira acusador ao topar com a evocação dos cinco anos em que foi Carlos Henrique. Clara já o absolveu, argumenta.

Se trocassem de lugar, Dirceu não teria sido tão misericordioso. Em 1968, ele descobriu que a estudante de filosofia Heloísa Helena, ou Maçã Dourada, que namorava havia semanas, era uma espiã do Dops. Um tribunal presidido pelo líder ludibriado considerou a ré culpada e a condenou a nunca mais aparecer por lá. Ninguém voltou a ver Heloísa Helena.

Descanse um pouco, senador

Primeiro, o senador Aloizio Mercadante avisou que todos os prefeitos reeleitos devem a vitória ao presidente Lula. "Como houve muito mais verbas e muito mais verbas federais, as administrações melhoraram bastante", decolou. Antes que lhe perguntassem os motivos da derrota dos petistas que tentaram reeleger-se, partiu para o tremendo looping: "O PT não perdeu em São Paulo. Apenas deixou de ganhar". Segundo a aritmética eleitoral do economista Mercadante, só perde quem está no poder. Da mesma forma que Marta Suplicy, também Walter Pinheiro em Salvador e Maria do Rosário em Porto Alegre apenas deixaram de ganhar.

O Método Mercadante permite concluir que o PT também não ganha se já está no poder. Apenas deixa de perder. Foi assim, portanto, com os companheiros João Cozer em Vitória, Raul Filho em Palmas, Roberto Sobrinho em Porto Velho, Luizianne Lins em Fortaleza, Roberto Angelim em Rio Branco (reeleitos no primeiro turno) e João da Costa, o poste que será prefeito do Recife. Sempre de acordo com a inventiva metodologia, o senador paulista não vai perder a eleição para o Senado em 2010. Apenas deixará de ficar por lá nos oito anos seguintes.

Mercadante está precisando de algum tempo de repouso.

O prefeito eleito precisa reaprender a ficar de pé

A primeira frase do pronunciamento do prefeito eleito obedeceu ao manual da velha política. "Dedico a vitória ao governador Sérgio Cabral", a criatura reverenciou o criador. As palavras seguintes rasgaram o script. Em vez de agradecer aos eleitores, Eduardo Paes orou aos pés do altar do santo padroeiro: "Quero agradecer ao presidente Lula, que soube superar os obstáculos que eventualmente existiram entre nós no passado". Um dos "obstáculos" (que talvez nem tenham existido, ressalva o "eventualmente") foi a acusação reiterada incontáveis vezes pelo deputado do PSDB: "O presidente Lula é o chefe da quadrilha do mensalão".

Já transformado em elogio da vassalagem, o que deveria ser o discurso de vitória afagou no verso seguinte o Primeiro Casal: "O presidente e a primeira-dama, dona Marisa, foram meus apoiadores", arrojou-se ao chão o prefeito eleito. Como Marisa Letícia da Silva não vota no Rio, nem deu as caras durante a campanha, pode-se deduzir que a mulher de Lula ainda não perdoou o feroz parlamentar que, na bancada tucana da CPI dos Correios, acusou seu marido de delinqüente e tentou colocar no banco dos réus o primogênito Lulinha. As súplicas contidas na carta sigilosa enviada a Marisa não surtiram o efeito desejado. Mas Paes não vai desistir.

Ao longo da semana, ele deixou claro que topa qualquer humilhação para redimir-se do que virou pecado. Na quinta-feira, ao sair da audiência com Lula no Planalto, fez de conta que o mensalão nunca existiu. Horas depois, ao percorrer o Congresso em companhia do governador Sérgio Cabral, ouviu a ordem do padrinho quando a dupla topou com o senador José Sarney: "Cumprimenta o nosso mestre, beija a mão dele". Com amáveis tapinhas na mão de Paes, Sarney impediu que se consumasse o gesto indecoroso.

Se não conseguir ficar de pé antes da posse, o prefeito eleito se transformará no primeiro a governar o Rio de joelhos.

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