Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 20, 2008

Reinaldo Azevedo

O mal-estar dos "progressistas"

"É preciso que não se faça do laicismo e do "progressismo" uma
nova religião. Nas democracias, não existe "o" Salvador: nem
o que vem em nome de Deus nem o que vem em nome das Luzes"

A exemplo de todo mundo e do mundo todo, considero Barack Obama o favorito nas eleições presidenciais americanas – desconfio que até o republicano John McCain pense o mesmo. Com o tsunami que colheu a economia, a todos parece impensável, e a mim também, que o democrata perca a disputa. Até o dia em que escrevo este artigo, as pesquisas indicam, no entanto, um empate técnico entre ambos. Na contagem dos delegados, dada a tendência dos estados, McCain leva ligeira vantagem. O chamado "pensamento progressista" tem reagido de modo um tanto estranho aos fatos – especialmente depois da indicação de Sarah Palin para vice na chapa republicana.

O mal-estar dos "progressistas" com o persistente McCain chega a relativizar o valor da própria democracia – que só provará a sua força se Obama vencer. As virtudes e fraquezas dos postulantes deixam de ser debatidas na terra. O confronto é transferido para uma esfera abstrata, que o poeta Bruno Tolentino (1940-2007) chamava de "o mundo como idéia" – título de um formidável livro seu. Nesse lugar-nenhum, dá-se, então, o choque entre o velho e o novo, a mudança e a reação, os modernos e os reacionários. Como um dos lados da disputa advoga uma natural e intrínseca superioridade moral, resta evidente que uma eventual vitória de McCain poria em dúvida as virtudes do próprio sistema.

Há dias, um articulista do jornal inglês The Guardianescreveu que, por enquanto, considera injusto o antiamericanismo presente em boa parte do mundo. Mas, alertou, se Obama não for eleito, ele começará a achar que o ódio faz sentido. E aqui lhes deixo uma dica do que eu chamaria "modo de ler": percebam como o candidato democrata, com alguma freqüência, é apresentado como a chance que os americanos têm de se redimir perante a história, de se desculpar por todos os seus malfeitos, de fazer um ato de contrição. Bem, eu não creio que eles devam desculpas a ninguém.

Esse "mundo como idéia" pode, eventualmente, recorrer à trapaça e mesmo à mentira em nome do futuro. No dia 11 de setembro, Sarah concedeu uma entrevista a Charlie Gibson, da ABC News (disponível no site abcnews.go.com), e foi indagada sobre o que poderia acontecer se a Geórgia, uma vez integrante da Otan – aliança militar integrada por países ocidentais, liderados pelos EUA –, sofresse um ataque da Rússia. Gibson fez uma pergunta indutiva: "A gente não teria de partir para a guerra?". E Sarah respondeu o óbvio: um tratado supõe a proteção mútua dos países que o integram. Noto: ela já havia dispensado generosas palavras de paz à Rússia, que chamou de "vizinho de porta" – afinal, ela governa o Alasca. Inútil. Foi tratada como uma cretina beligerante, para quem uma guerra com os russos é uma trivialidade – além de ser favorável à exploração do petróleo e contra o aborto...

Jamais se deve duvidar da fé de Obama, a menos que o sujeito seja um porco reacionário e fundamentalista. Mas a de Sarah pode ser objeto de chicanas e chacotas as mais diversas. A sua firme posição contrária ao aborto – e convenham que boa parte da América está com ela – é apresentada como uma das mais claras evidências de seu atraso mental, suposta manifestação de um país que nega as conquistas do mundo contemporâneo. Na entrevista a que me referi, foi indagada: "Acredita que os EUA estão numa guerra santa?". A resposta foi boa. Ela citou o presidente Lincoln (1809-1865), um republicano: "Não devemos rezar para Deus estar ao nosso lado numa guerra ou em outra hora qualquer; devemos é rezar para estar ao lado de Deus". Mais: "Eu acredito que a luta contra o terrorismo islâmico é o lado certo (...). Eu odeio a guerra, e, hoje, Charlie, é o dia em que envio meu filho mais velho (...), com outros 4 000 mulheres e homens americanos admiráveis, para lutar pelo nosso país, pela democracia e por nossas liberdades". Sarah não é boba. E isso pode ser muito irritante.

Ed Andrieski/AP

Obama, o "berlinense"
Embora tudo esteja a seu favor, por que o democrata não dispara nas pesquisas?

Obama é o favorito. Todos os analistas estão certos. Raramente as condições objetivas, para lembrar um fraseado antigo da teoria política, concorreram tanto a favor de um nome. Bush é o presidente mais impopular da história; os americanos rejeitam a guerra do Iraque; e já se sabe que a crise econômica está longe do fim – culpar a Casa Branca por ela requer certa torção da realidade, mas não importa. Governos arcam com o peso das crises e são beneficiados por ciclos virtuo-sos. Embora tudo esteja a seu favor, por que Obama não dispara nas intenções de voto? Vim respondendo a essa questão ao longo do texto.

No dia 7 de janeiro deste ano, escrevi no meu blog um pequeno artigo em que indagava: "Que diabo se passa com o Partido Democrata americano, que tem como favoritos uma mulher e um negro com sobrenome islâmico e nenhum homem branco para enfrentá-los?". Em tempos em que as pessoas preferem parecer justas a ser inteligentes, fui alvo de uma saraivada: "Machista!". "Racista!". "Machista e racista!".

Eu apenas tomava o par "homem branco" como "um apelo simbólico à tradição, à conservação de um modelo que, inegavelmente, deu certo e fez a maior, mais importante e mais rica democracia do mundo; que venceu, por exemplo, o embate civilizatório com o comunismo". É evidente que esse sistema só demonstra mais virtudes à medida que se deixa renovar. Mas essa evidência não respondia à minha curiosidade: "Quem encarna, no Partido Democrata, o elogio da tradição, da conservação?". A que chegava mais perto era Hillary Clinton. E foi fuzilada justamente por isso.

Robyn Beck/AFP/Getty Images

Republicanos persistentes
Sarah Palin não é boba, apesar de quererem pintá-la como tal, e McCain leva ligeira vantagem no número de delegados

A famosa frase "É a economia, idiota", com que um assessor de Bill Clinton definiu a estratégia para vencer George Bush, o pai, brutalizou um tanto a percepção política. Ela é verdadeira apenas quando não falha... Além das condições objetivas de um país, há as subjetivas, plasmadas em valores, em memórias histórica e afetiva, nas crenças, nas religiões. Elas dizem respeito ao "homem moral", não ao "homem econômico". A militância e o pensamento engajado quase nunca representam a média das opiniões – o corriqueiro é que haja um divórcio entre essas duas instâncias. A média das opiniões, aliás, pode ser visualizada no excelente site Real Clear Politics (www.realclearpolitics.com), que mantém atualizado um mapa com a situação eleitoral nos estados americanos: neles se elegem os delegados que escolherão o presidente.

Por enquanto, Obama lidera nos extremos "progressistas" do país, literalmente nas margens dos Estados Unidos. McCain está com o "meião". Se fosse para fazer literatura, diria que o democrata tem a parcela que olha para fora, e McCain, a que olha para dentro; Obama fica com a que quer ser influente em Berlim; McCain, com aquela cujas mães levam os filhos para o jogo de hóquei. Obama pode estar de frente para o mundo, onde transitam os personagens retratados pelo artista pop Andy Warhol (1928-1987), mas também de costas para as vastas dimensões que aparecem nos quadros de Edward Hopper (1882-1967). McCain tem resistido ao furacão Obama, a despeito de tantas crises, porque, nessa parte do país que alguns pretendem caracterizar como reacionária e racista, estão algumas das melhores virtudes da América. E isso inclui, ainda que pareça espantoso, a sua fé, de que Sarah passou a ser um símbolo – que resiste, por enquanto, até à quebradeira na economia.

O governo dos EUA, a exemplo de todos os países democráticos, é laico, não se deixa orientar oficialmente pela religião. E isso é bom. Mas é preciso que não se faça do laicismo e do "progressismo" uma nova religião, também ela com vocação missionária, eventualmente messiânica. Nas democracias, não existe "o" Salvador: nem o que vem em nome de Deus nem o que vem em nome das Luzes.

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