Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 06, 2008

A reação contra os arapongas

Rouco de tanto ouvir

A decisão do governo de conter a ousadia dos 
espiões oficiais na Abin e na PF encheu os ouvidos
do presidente Lula de desculpas esfarrapadas


Otávio Cabral

Alan Marques/Folha Imagem e Ed Ferreira/AE
REAÇÃO IMEDIATA CONTRA ARAPONGAS
Lula afastou Paulo Lacerda da direção da Abin depois da revelação de que agentes do órgão grampearam o presidente do Supremo Tribunal Federal

A revelação de que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) espionou autoridades do governo, senadores da República e ministros do Supremo Tribunal Federal provocou uma vigorosa reação institucional contra o aparato estatal que vem violando de maneira acintosa a privacidade dos cidadãos. Na semana passada, uma reportagem de VEJA mostrou que o descontrole chegou ao extremo de agentes a serviço da Abin terem interceptado ilegalmente uma conversa telefônica entre o ministro Gilmar Mendes, presidente do STF, a mais alta corte de Justiça do país, e o senador Demóstenes Torres, um dos líderes oposicionistas no Congresso. O episódio só não se transformou numa grave crise graças à ação rápida e convincente das autoridades. De imediato, o presidente Lula afastou o diretor da Abin, Paulo Lacerda, e toda a cúpula do órgão. Também mandou instaurar sindicância para apurar o envolvimento de servidores da agência estatal na instalação de escutas e na obtenção e manuseio de informações por meio da captação de diálogos telefônicos sem autorização judicial. O presidente ainda determinou ao ministro da Justiça que acionasse a Polícia Federal para investigar o caso e encaminhasse ao Congresso um projeto de lei estabelecendo punições severas aos espiões que atuam à margem da lei. Foi uma reação inicial equivalente à revelação do problema.

Desde a extinção do SNI, o serviço de inteligência é tratado pelos governos democráticos com certo desprezo e até com alguma repugnância. Em lugar de informações estratégicas, o órgão carrega o estigma de produzir apenas problemas – muitos, e às vezes dos grandes. Em 2000, descobriu-se que arapongas oficiais espionaram um ministro, um ex-presidente da República, um procurador e até o filho do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Na ocasião, o diretor da Abin foi demitido – só. Nenhum dos três últimos presidentes da República enfrentou a questão com a devida dimensão. O resultado é que a agência oficial continuou a atuar usando métodos autorizados no passado, mas intoleráveis nos dias atuais. No governo Lula não foi diferente. Em seis anos, o diretor da Abin já foi trocado quatro vezes. Por último, sob o comando de Lacerda, um delegado de polícia, servidores da agência foram pilhados ouvindo telefones de ministros de estado, ministros do Supremo, senadores, do presidente do Congresso e até de auxiliares próximos do presidente Lula. Mais uma vez o governo tem a chance de resgatar a função do serviço de inteligência – indispensável nas grandes democracias –, mas precisa antes identificar os responsáveis pelas ações clandestinas e puni-los.


Ed Ferreira/AE
ALVOS OFICIAIS
Os senadores Demóstenes Torres, Tião Viana e Garibaldi Alves com o presidente do STF, Gilmar Mendes: todos grampeados

A ofensiva contra os subterrâneos da espionagem oficial só começou depois que o presidente percebeu a iminência da crise. Na segunda-feira, o presidente do Supremo, Gilmar Mendes, foi ao Palácio do Planalto, acompanhado de dois colegas da corte, para cobrar uma ação concreta e imediata do governo contra o ataque dos espiões oficiais. A reunião teve a participação dos ministros Nelson Jobim, da Defesa, e Tarso Genro, da Justiça. Depois do encontro, Lula conversou longamente com Jobim. Ex-presidente do STF e ex-deputado, o ministro advertiu o presidente do risco de uma crise institucional. Se Lula não tomasse uma atitude rapidamente, alertou Jobim, compraria uma briga com o Judiciário e com o Legislativo que teria resultados imprevisíveis. Jobim tinha razão. Os ministros do STF pensavam até em convocar cadeia nacional de rádio e televisão para denunciar a perseguição patrocinada por agentes do estado contra o Judiciário e o Congresso. Permaneceriam reunidos em sessão secreta até que alguma medida fosse anunciada. "Nesse momento, o presidente percebeu que a coisa era muito grave", disse a VEJA um ministro cujo gabinete fica no Palácio do Planalto.

A decisão de afastar todo o comando da Abin, porém, só foi anunciada depois que Jobim mostrou ao presidente documentos que provariam que a agência possuía aparelhos capazes de fazer escutas telefônicas e ambientais – informação que havia sido negada pelo general Jorge Felix, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional. Desmentido na frente do presidente por um colega de governo, o ministro chegou a pedir demissão, mas acabou convencido por Lula a permanecer no cargo. Em depoimento à CPI dos Grampos, o general – que é o responsável pela sindicância que vai investigar as escutas clandestinas – voltou a repetir que a Abin não faz grampo. Dono de uma teoria muito pessoal sobre o caso, ele propaga que as gravações ilegais foram feitas por pessoas ligadas ao ex-banqueiro Daniel Dantas. Encarregado, entre outras coisas, da segurança das comunicações do próprio presidente da República, ele ainda conseguiu se superar. Indagado sobre como os brasileiros poderiam se prevenir da onda de grampos ilegais que varre o país, respondeu: "Sobre tecnologia antigrampo, a única realmente eficaz é não abrir a boca". Lula ficou tão contrariado com as bobagens ditas pelo general que cancelou as participações dele nas reuniões matinais dos dias seguintes.


Andre Dusek/AE
O GENERAL E SUA FANTASIA
O ministro da Defesa, Nelson Jobim (à esq.), desmentiu o general Jorge Felix na frente do presidente Lula ao revelar que a Abin dispõe de uma maleta capaz de fazer escutas ilegais

Se a sindicância da Abin tem tudo para terminar à imagem e semelhança de seu artífice, sinais positivos são emitidos pela Polícia Federal. Ágeis, por enquanto, os delegados encarregados do caso inspecionaram na semana passada os telefones do Congresso para verificar se os grampos contra os senadores haviam sido feitos nas dependências da casa e também ouviram alguns depoimentos. Reservadamente, os delegados se dizem preparados para enfrentar até o constrangimento de descobrir que agentes da corporação podem ter se associado aos arapongas da Abin em ações clandestinas. Os policiais têm informações de que isso, de fato, pode ter acontecido dentro da Operação Satiagraha – a famosa ação que resultou na prisão do banqueiro Daniel Dantas. Há um testemunho muito interessante que pode ajudar a esclarecer a existência de grampos de conversas do ministro Gilmar Mendes. Na última quarta-feira, durante a solenidade de posse do novo presidente do Superior Tribunal de Justiça, o ministro encontrou-se com a desembargadora Suzana Camargo, do Tribunal Regional Federal de São Paulo. Ela voltou a dizer ao ministro ter ouvido do juiz Fausto de Sanctis, o magistrado responsável pela Satiagraha, que o STF "era uma sujeirada só".

De Sanctis afirmou à desembargadora ter recebido "informes" segundo os quais advogados de Dantas haviam participado de um jantar com assessores do ministro em Brasília, numa insinuação de que algum acerto entre eles tinha sido feito. "O ministro ainda me criticou, disse que eu era incompetente", reclamou o juiz, de acordo com o relato da desembargadora. Exatamente nesse dia, 10 de julho, a segurança do STF detectou indícios de grampo dentro do gabinete do ministro Gilmar Mendes. Também nesse dia os telefones do ministro já estavam grampeados. A Operação Satiagraha contou com a participação clandestina de agentes da Abin. "Disse à desembargadora que ela precisava contar isso à polícia", afirma Gilmar Mendes. O que se conversava no interior do gabinete do ministro Gilmar Mendes chegava a São Paulo, pelo que se depreende, como "informes" – jargão que os espiões usam para identificar uma informação extra-oficial.

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