Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 13, 2008

Prazos de tolerância Mauro Chaves


Um dos aspectos mais vergonhosos da impunidade brasileira é a tolerância dos prazos para que cessem os envenenamentos, as devastações e as agressões sistemáticas à vida. Legisladores e órgãos públicos estabelecem prazos demasiadamente longos para que terminem as contaminações e os prejuízos de vários tipos causados à saúde das populações, sob o pretexto de que os causadores de tais males precisam de tempo para “se adaptar” às novas regras saneadoras. Mas nem esses longos prazos são respeitados, permanecendo a frouxidão de controle sobre os contumazes agressores da vida.

Em 2002 o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) baixou a Resolução nº 315, que determina a redução de emissão de poluentes por veículos movidos a diesel a partir de janeiro de 2009. Deram-se, assim, longos seis anos para que os veículos a diesel “se adaptassem” a uma redução de enxofre. Faltando poucos meses para se encerrar esse prazo, o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, percebe, espantado, que absolutamente nada foi feito para essa “adaptação”. Houve uma generalizada omissão, por parte da Petrobrás, da Agência Nacional do Petróleo (ANP), do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), de tal sorte que o ministro se vê obrigado a esticar o prazo por mais três anos, deixando para 2012 a obrigação de os veículos a diesel envenenarem menos os habitantes das cidades, com a redução de enxofre. Quantos milhares de seres humanos pagarão - com a deterioração da saúde e da qualidade de vida - por essa irresponsável omissão?

Por falar em Anfavea, vem-me à lembrança a indagação que fiz, há alguns anos, ao então presidente dessa entidade, num programa de televisão. Eu tinha a informação de que entidades de fiscalização dos EUA haviam feito exigências de centenas de itens de segurança para autorizarem a importação de carros do Brasil. As montadoras daqui cumpriram todos os itens e obtiveram aprovação para colocar os carros em território norte-americano. Como os componentes relacionados a tais itens eram fabricados aqui mesmo, no Brasil, eu indagava por que nossos carros, destinados ao mercado interno, também não dispunham do mesmo tipo de segurança - o que poderia contribuir para a redução dos nossos recordes mundiais de mortes em acidentes de trânsito. A resposta do dirigente foi inacreditável. Disse ele que no mercado brasileiro “não havia demanda” para tais itens de segurança. Nossa demanda era pela potência do motor e pelo “status” dos veículos. Quer dizer, para ele, as pessoas no Brasil não se preocupavam em escapar vivas dos acidentes.

O Brasil tem hoje cerca de 5 milhões de hectares de cana-de-açúcar plantados, 75% no Estado de São Paulo. A maior parte dessa área cultivada passa pelo método medieval das queimadas, que por longos períodos fazem chegar à atmosfera, com danos terríveis às populações - especialmente as que, no interior, vivem em regiões de maior concentração dos canaviais -, numerosas partículas e gases poluentes. Havia uma lei que obrigava a extinção das queimadas em 2008. Mas em 2001, sob o governo Geraldo Alckmin, aprovou-se uma nova legislação “prorrogando” esse prazo da seguinte forma: para as áreas mecanizáveis - isto é, relativamente planas e de dimensões maiores do que 150 hectares - o prazo para parar de queimar foi estabelecido em 2021. E para as áreas menores e com declividade - ou seja, as não-mecanizáveis - foi esticado esse prazo para (acreditem!) 2031.

É verdade que o governador José Serra e o seu secretário do Meio Ambiente, Xico Graziano, têm-se esforçado para conseguir, em acordos com entidades de representantes de plantadores de cana, a redução de tais prazos. Graças a esses acordos, nas áreas normais o prazo das queimadas já passou de 2021 para 2014 e nas com declividade, de 2031 para 2017. Mesmo assim, tais prazos ainda continuam absurdos, em vista dos enormes malefícios causados por tão primitivo método de colheita. Diversos estudos realizados por pneumologistas, biólogos e físicos comprovam que as partículas suspensas na atmosfera penetram no sistema respiratório, causando reações alérgicas, inflamatórias, podendo chegar à corrente sanguínea e produzir grandes estragos em diversos órgãos do corpo humano. Será que o prestígio mundial do etanol brasileiro e o frenesi pela maximização de lucros (sem preocupação ambiental) justificam a destruição da saúde de milhares de pessoas, especialmente idosos e crianças e, sobretudo, dos trabalhadores na colheita da cana, vitimas mais trágicas desse processo?

Outro exemplo - já clássico - da distância, no tempo, entre a adoção legal e a adoção real de um instrumento de proteção à vida é o cinto de segurança. O Brasil foi um dos primeiros países do mundo a adotar a obrigatoriedade de instalação do cinto em todos os veículos - por determinação do Conselho Nacional do Trânsito (Contran) de 1968. Mas foi, provavelmente, o último a tornar seu uso, de fato, obrigatório, pelo Código de Trânsito Brasileiro, de 23 de setembro de 1997. Portanto, houve aí um prazo de tolerância de 29 anos. Os ambulantes vendiam nas ruas umas bolsinhas especiais para enrolar os cintos nos carros, que ficavam penduradas nas janelas laterais. Tratava-se de algo absolutamente inútil nesses quase 30 anos. Quantas pessoas não teriam escapado de mortes trágicas ou de lesões irreversíveis, tivesse coincidido a adoção do dispositivo com a obrigação de usá-lo?

Enfim, no Brasil os “prazos de adaptação” são tempos de embromação no cumprimento das leis - especialmente as de proteção à vida.

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