O pacotão do secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Henry Paulson, elaborado em parceria com o presidente do Federal Reserve (banco central), Ben Bernanke, mexe com uma quantidade enorme de esqueletos e de defuntos recentes.
Ontem, esta coluna fazia uma perguntinha reles: por que preço seriam adquiridos os tais ativos podres dos bancos? Seriam pelo preço de lixo ou seriam alguma coisa próxima do valor de face?
A resposta a essa pergunta estabelece muito mais do que diferenças de centenas de bilhões de dólares na conta que irá para o contribuinte. Se é para salvar os bancos, o preço não vai ser de lixo. Talvez leve certo deságio, definido sabe-se lá por que critério, mas muda muita coisa.
Pode mudar tudo, por exemplo, nas duas megaagências Fannie Mae e Freddie Mac, em cujos balanços o Tesouro americano e o Fed acabam de injetar US$ 200 bilhões. E pode mudar na seguradora AIG, que recebeu injeção de vitaminas de US$ 85 bilhões.
O passivo apodrecido de US$ 613 bilhões do Lehman, que há uma semana não encontrou interessado por uma fração desse valor, ganha novo esplendor e pode trazer o banco de volta à vida.
O que acontecerá com centenas de bilhões de dólares em ativos já desvalorizados (write-downs) dos balanços? Esses ativos não sumiram. Em algum ossário estão depositados e agora se mexem lá dentro. O fundão do Paulson permitirá que se transformem em lucros enormes?
Nos últimos meses, fundos soberanos e patrimônios sem transparência de países remotos foram estimulados a reforçar o capital dos bancos combalidos. São posições agora premiadas com a enorme valorização das ações desses bancos. Bela ironia...
E o que acontecerá com centenas de bancos de outros países que também foram contaminados pela aids financeira, como o União de Bancos Suíços, o britânico HBOS ou o alemão Postbank? Permitirão as autoridades dos seus países que fiquem em inferioridade de condições diante da concorrência americana? Ou também esses serão contemplados com um Proer especial?
Intervenções assim exigirão a contrapartida de mais regulação, mais supervisão e mais transparência. Bancos de investimento, por exemplo, vinham atuando com excessiva alavancagem, sem que nenhum organismo regulador impusesse mais responsabilidade. Os bancos de varejo burlaram os limites técnicos na concessão de créditos.
As seguradoras, por sua vez, ultrapassaram sua capacidade de cobertura e foram negligentes na formação de reservas técnicas para enfrentar casos de sinistros financeiros sistêmicos. E ficou claro desde a quebra do LTCM, em 1998, que a permissividade com que atuam certos fundos hedge é perigosa o suficiente para sabotar o sistema.
Os bancos centrais, por sua vez, podem atuar apenas localmente num mercado financeiro que, no entanto, está cada vez mais globalizado. Uma coordenação global sob comando unificado parece cada vez mais necessária. Mas como essa nova ordem poderia ser implantada num cenário em que ainda prevalece o poder soberano dos Estados nacionais independentes?