Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, setembro 18, 2008

A nação perdida Demétrio Magnoli

A Bolívia é uma prova do fracasso da teoria da modernização e do triunfo trágico das políticas calcadas sobre identidades étnicas. A teoria da modernização, tanto na vertente marxista quanto na conservadora, ambas positivistas, enxerga as identidades étnicas como anacronismos: sobrevivências de um passado atrasado destinadas a desaparecer pela ação trituradora do capitalismo. Mas as políticas étnicas bolivianas - conduzidas, em sentidos contrapostos, por Evo Morales e pela elite dirigente de Santa Cruz - não expressam teimosas realidades ancestrais: as identidades ameríndia, no Altiplano, e camba, no Oriente, são invenções recentes que funcionam como ferramentas no jogo de poder. Os plebiscitos que confirmaram o mandato do presidente, bem como os dos governadores oposicionistas do Oriente, atestam o triunfo dos dois lados na fabricação de identidades étnicas contrastantes. Para azar da Bolívia.

Não se deu a merecida atenção às fotografias das sessões da Assembléia Constituinte boliviana da qual emanou o texto constitucional que figura como pomo da discórdia. Os deputados da maioria exibiam vestimentas ameríndias tradicionais, algo que só não provoca estranheza a quem desconhece a Bolívia. Os ameríndios são 5 milhões, entre 9,1 milhões de bolivianos. Hoje, metade deles vive nas cidades. El Alto, a "cidade indígena" na periferia de La Paz, já tem 870 mil habitantes, que fazem da internet um nexo entre o mundo e as comunidades aimarás dos povoados do Altiplano. A língua espanhola, que foi o idioma apenas dos brancos e mestiços, atualmente é tão utilizada pelos índios quanto o quíchua e o aimará. Os ameríndios bolivianos não usam mais vestimentas "indígenas", exceto para vender produtos a turistas ou se são representantes de um projeto étnico na Assembléia Constituinte.

A "Bolívia ameríndia" é uma ruptura identitária. Os mineiros do estanho que deflagraram a Revolução Boliviana de 1952 tinham origem indígena, mas se definiam como trabalhadores e bolivianos, não como índios. O próprio Evo Morales alçou-se à notoriedade atuando como liderança sindical dos camponeses "cocaleros". Foi só mais tarde, quando iniciou a jornada rumo à presidência, que ele se aliou aos arautos de um "renascimento aimará" e a ONGs multiculturalistas internacionais. Dessa aliança nasceu o projeto de uma "Bolívia plurinacional", agora consagrado na letra de uma Constituição que acende a fagulha da guerra civil.

"Elite branca", esse é o epíteto usado pelos governistas para fazer referência aos oposicionistas da "Meia-Lua" boliviana. Entretanto, nos Departamentos orientais, elites e povo não se enxergam como brancos, mas como mestiços cambas. O movimento camba nasceu como reação à Revolução Boliviana dos mineiros de estanho, fabricando uma suposta identidade ancestral para o povo do Oriente. Segundo essa narrativa romântica, os cambas seriam os frutos da miscigenação entre brancos de origem espanhola e guaranis das terras baixas. O relicário de imagens dos guaranis "ancestrais" desempenha, em Santa Cruz, funções simbólicas paralelas às das "nações originárias" ameríndias em La Paz.

A ascensão de Evo Morales, portando a bandeira da restauração das "nações originárias", forneceu combustível para a transformação do projeto identitário camba num movimento popular. Evo e os seus continuam a crismar os opositores como "minoria oligárquica", mas sabem que não é bem assim. Eis o motivo pelo qual, diante das alternativas da repressão e da negociação, optaram pela segunda.

Paradoxalmente, a natureza trágica do impasse boliviano decorre da convergência de fundo entre La Paz e Santa Cruz, sintetizada na fórmula da "Bolívia plurinacional". Essa fórmula significa que todos estão de acordo em renunciar à nação boliviana. De acordo com ela, a Bolívia não existe, a não ser na forma de uma entidade territorial: uma moldura geográfica habitada por nações distintas, em tudo apartadas. O consenso da renúncia molda os dissensos políticos capazes de ensangüentar o país.

Nos tempos da Revolução Boliviana, a riqueza da Bolívia estava incrustada no subsolo do Altiplano indígena, sob a forma de extensos veios de cassiterita. Hoje, a riqueza encontra-se nos depósitos de hidrocarbonetos do subsolo do Oriente camba. Na cúpula da Unasul, dias atrás, Evo Morales defendeu a "unidade" do país e acusou os opositores de tramarem a "divisão". Na sua tradução da "Bolívia plurinacional", as "nações" bolivianas têm direito à autonomia, mas a "unidade" repousa sobre o controle central dos recursos naturais e das rendas dos hidrocarbonetos. Os governadores da "Meia-Lua", por sua vez, exigem que essas rendas sejam subordinadas ao princípio da descentralização e aos privilégios autonômicos departamentais.

A nação, nas palavras de Benedict Anderson, é uma "comunidade imaginada". Os bolivianos imaginaram-se como integrantes de uma nação única mesmo nas turbulências incessantes de quase toda a segunda metade do século 20. Agora, em razão das opções de suas elites políticas, tanto a do Altiplano quanto a do Oriente, imaginam-se como soldados de nações étnicas separadas pela fronteira intransponível do sangue. Na cúpula da Unasul, Hugo I atribuiu a crise à "ingerência do império americano" e a "uma espécie de greve" do comando militar boliviano. Mas, apesar do que pensa o Mussolini latino-americano, a crise é nacional e os chefes militares comandam um Exército rachado de alto a baixo pela mesma linha de corte que divide a nação. Manifestando seu respaldo ao governo de Evo Morales, o presidente equatoriano, Rafael Correa, prometeu que a América Latina não permitirá a conversão da Bolívia nos "Bálcãs". Ninguém, exceto os bolivianos, tem o poder de realizar esse desejo. Mas não será fácil, pois o requisito é uma renúncia à renúncia. Depois de tudo, alguém ainda quer ser simplesmente boliviano?

Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br

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