Míriam Leitão - Bolívia e Cuba

Panorama Econômico

O Globo

12/9/2008

Bolívia, cercada de terra, eternamente sonhando com o mar; Cuba, cercada por mar, há longo tempo isolada. Diferentes e parecidos, os países tiveram uma dura semana. Cuba terá que reconstruir 300 mil casas depois da devastação do Ike. Bolívia enfrenta uma ferida mais velha. O grupo de amigos, Brasil-Argentina-Colômbia, desembarcará em La Paz para tentar aproximar os dois lados do país dividido. O Brasil tem que ter uma presença mais forte na procura de uma solução negociada. Não apenas pelo risco de escassez de gás, mas para evitar que o vizinho mergulhe numa guerra civil. Ontem, quando o Brasil parou de receber metade do gás que deve vir para o país, houve um momento de aflição. São Paulo recebe da Bolívia 70% do gás que consome. De tarde, o pior do susto passou. Mas o episódio deixa lições. A primeira é que é preciso ter planos de contingência que não sejam os feitos em clima de emergência. A segunda é que o Brasil não pode ter uma atitude contemplativa. O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães e o secretário Marco Aurélio Garcia vão ser a parte brasileira no grupo de amigos da Bolívia. O ponto certo da participação do Brasil seria defender o princípio da legalidade, mas não a defesa de Evo Morales por motivos ideológicos. A diferença pode parecer sutil, mas na diplomacia é essencial. Se parecer pró-Bolívia, o Brasil vai defender melhor os interesses do país vizinho, e os nossos. Se parecer pró-Evo, vai entrar na briga boliviana. Ontem foi o primeiro dia normal em Cuba depois do Ike. Segunda e terça-feira fechou tudo, o fornecimento de energia foi suspenso por medida de precaução para evitar vítimas na hipótese de rompimento de fios, a telefonia estava instável. Mas o furacão, descrito pelo embaixador brasileiro lá, Bernardo Pericás, como o pior da história recente da ilha, deixou 300 mil casas destruídas, a maior parte da agricultura afetada, mas, felizmente, poucos mortos. O Ike passou pela ilha toda e logo depois de outro furacão, o Gustav, ter atingido parte do país. - Houve, felizmente, poucos mortos, porque a Defesa Civil de Cuba é muito eficiente, bem coordenada, as televisões e rádios dão instruções o dia inteiro e as pessoas são muito disciplinadas. Isto fez com que fosse possível retirar a maioria da população da área costeira. Mas houve muita perda econômica - disse Pericás. A Bolívia não é vítima de um desastre natural, mas sofre uma convulsão que trouxe à tona antigos conflitos. Os descendentes de espanhóis que moram nos departamentos da Meia Lua, principalmente na rica Santa Cruz, acusam os "índios" pelo atraso do país; os índios culpam o que eles chamam de "brancóides" por toda a exclusão que sofreram nos últimos quatro séculos. O racismo é mútuo. A História ajuda a entender o lado do governo; os erros do governo ajudam a entender o lado de Santa Cruz-Beni-Pando-Tarija. Quando os espanhóis chegaram, os aimaras já haviam enfrentado os incas e sobrevivido com sua identidade e, por isso, se acham resistentes. Os quéchuas originais passaram a se chamar incas e foram os principais derrotados pelos espanhóis, que se aproveitaram do conflito entre as duas grandes tribos. O domínio dos espanhóis foi sucedido pelo domínio da elite descendente de espanhol sobre a grande maioria dos chamados "povos originários". O sofrimento dessa maioria foi tão longo que basta citar um dado: a escravidão só acabou de fato no país no fim dos anos 40, quando foi suspensa a prática de a pessoa trabalhar em troca apenas de comida. A chegada de Evo Morales ao poder foi entendida como a desforra dos índios. A Constituição de Oruro que Evo Morales quer aprovar, e a Meia Lua rejeita, é a prova de que eles exacerbaram. Ela reconhece a autonomia de 36 nações indígenas. Esses grupos têm até autonomia judiciária, a primeira instância da Justiça é tribal. Algumas dessas "nações" - uma delas com apenas 14 pessoas - estão dentro dos departamentos que hoje estão rebelados, querendo autonomia. A Constituição foi votada dentro de um quartel e sem a oposição. Não tem legitimidade, mesmo que tenha cumprido os ritos legais. Essa Constituição retira poder político, administrativo e econômico dos departamentos, justamente quando eles acabaram de votar por mais autonomia. Para negociar a pacificação é preciso encontrar o caminho estreito que dê mais chance de inclusão aos grupos descendentes de indígenas e, ao mesmo tempo, reconheça o desejo de mais autonomia dos departamentos. Nas estatísticas, as diferenças e semelhança dos dois países. Cuba tem PIB de US$50 bilhões, a Bolívia de US$40 bilhões. No PIB per capita são parecidos. A Bolívia tem um índice de mortalidade infantil de 49 por mil; Cuba de menos de seis. A Bolívia tem 13% de analfabetismo, Cuba tem 0,2%. Ontem passaram a ter outra coisa em comum: ambos não têm embaixador nos EUA. Cuba, neste momento, precisa de alimentos, material de construção, material elétrico para acudir a emergência. Seu maior risco é não encerrar o longo período autoritário. A Bolívia precisa de pacificadores. Seu maior risco é que velhas feridas étnicas a impeçam de aproveitar a enorme chance das suas reservas de gás