Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, setembro 04, 2008

A imagem da perfeição Demétrio Magnoli

A China foi perfeita durante duas semanas. Bem antes da inauguração da curta era da perfeição, o governo chinês alertou a imprensa internacional contra a "politização" dos Jogos Olímpicos. Na linguagem em código compartilhada por todas as ditaduras, o alerta era uma conclamação à imprensa para que praticasse a autocensura. Com raras exceções, por amor aos patrocinadores ou sinceramente comovidos pela eficiência técnica do Estado totalitário, jornais e jornalistas do mundo inteiro se curvaram. Por um tempo fugaz a crítica cessou, abrindo passagem à perfeição.

Ela chegou na cerimônia de abertura, quando a graciosa Lin Miaoke, de 9 anos, com marias-chiquinhas e um vestido vermelho, supostamente cantou Ode à Pátria. O evento era uma fraude, como logo depois se soube por uma inconfidência de Chang Qigang, o diretor musical da cerimônia. A voz oculta atrás da imagem da perfeição pertencia a Yang Peiyi, de 7 anos e com um dentinho torto.

"A razão por trás disso é que precisamos colocar os interesses do país em primeiro lugar", justificou Qigang. Os "interesses do país" foram definidos na hora derradeira por um integrante do Politburo do Partido Comunista Chinês (PCC), que assistiu ao ensaio final e concluiu que a garotinha imperfeita não devia representar a pátria perante a audiência do planeta. A imprensa relevou o ato do poderoso dirigente anônimo, qualificando-o, no máximo, como um episódio de ocultação de informação. Mas o nome disso é eugenismo e o gesto expressou uma dupla lealdade: às origens do moderno movimento olímpico e à tradição identitária do Estado chinês.

O educador Zhang Boling (1876-1951) fundou, em 1904, o Colégio Tianjin Nankai, um centro preparatório da elite chinesa por onde passaram, entre outros, os primeiros-ministros Chou En-lai e Wen Jiabao. Sob a influência das public schools da Inglaterra vitoriana, ele instituiu a educação física na sua "Família de Escolas Nankai", lançou as bases do Comitê Olímpico Chinês e delineou um programa nacional: "Uma grande nação deve primeiro fortalecer a raça, uma grande raça deve primeiro fortalecer o corpo."

Não havia originalidade, mas importação, no programa de Boling. O inglês Francis Galton, primo de Charles Darwin, cunhara em 1883 o termo eugenia e defendia a regulamentação dos matrimônios em razão das virtudes e dos defeitos hereditários dos casais. Nos EUA, inspirado pelas idéias de Galton, Theodore Roosevelt instituiu uma Comissão de Hereditariedade com a missão de estimular o aperfeiçoamento físico e intelectual da raça. Leis de esterilização foram passadas em alguns Estados americanos a partir de 1907, enquanto a Suécia e a Suíça conduziam programas oficiais eugenistas. Sob a presidência de Leonard Darwin, filho do célebre naturalista, reuniu-se em Londres, em 1912, a Primeira Conferência Internacional de Eugenia. Quatro anos depois, Madison Grant publicaria The Passing of the Great Race, obra seminal para o nazismo, que inseria o eugenismo numa moldura racial.

Pierre Frédy, o barão de Coubertin, morreu em 1937 e foi enterrado em Lausanne. Seis meses depois, num ritual macabro de exumação, seu coração foi extraído, transportado e enterrado em Olímpia, o lugar das antigas Olimpíadas, numa cerimônia à qual assistiu seu amigo nazista Carl Diem. Um ano antes, nos Jogos de Berlim, com o apoio de Joseph Goebbels, Diem inventara, e Leni Riefenstahl filmara, o ritual da passagem da tocha olímpica. A inovação dos chineses para os Jogos de Pequim consistiu em fazer da segunda tumba de Coubertin a destinação inicial do percurso da tocha.

"Os jovens de todo o mundo" prepararão o caminho para "aperfeiçoar a raça humana". Coubertin inaugurou o movimento olímpico sob o influxo dos seus entusiasmos complementares pelo eugenismo e pela educação física. Como tantos conservadores da época, ele rejeitava a utopia socialista, mas compartilhava com seus arautos o desprezo pelo individualismo, com uma crença profunda no Estado e uma fé inquebrantável no poder das técnicas modernas. A escala da tocha chinesa na tumba espiritual do pai das Olimpíadas modernas exprimiu mais que um simbolismo gratuito: o site do Comitê Olímpico Chinês descreve o seu Programa Nacional de Condicionamento Físico como uma ferramenta para "promover atividades esportivas de massa, aperfeiçoando o físico do povo e impulsionando a modernização socialista do país".

Zhang Boling, tanto quanto Coubertin, poderia assinar o núcleo da sentença anterior. Mas o educador modernista era apenas um elemento num processo maior de infusão de idéias ocidentais. No outono do Império do Centro, um tempo de crise e decadência, quando se rotulava a China como o "homem doente da Ásia", intelectuais reformadores introduziam na história chinesa um conceito nacionalista de fundo racial e um conceito racial de inspiração eugênica. O mais brilhante entre eles, Liang Qichao (1873-1929), postulou que os chineses Han formavam uma etnia especial, e não apenas a coletividade mitológica dos descendentes do Imperador Amarelo ou o fluido conjunto dos herdeiros culturais da dinastia Han (206 a.C.-220 d.C.). Esse novo paradigma serviu como alicerce para um projeto de reconstrução nacional baseado na supremacia Han que empolgou tanto os nacionalistas quanto os comunistas.

Há um novo ciclo de modernização em curso na China e uma política externa de "ascensão pacífica" que se nutrem da idéia de restauração das glórias passadas do Império do Centro. A elite burocrática de "comunistas de mercado" do PCC bebe nos chafarizes intelectuais construídos por reformadores como Liang Qichao e Zhang Boling e promove um renascimento nacionalista. O triunfo no quadro de medalhas e a exibição de Lin Miaoke, o "anjo sorridente", na cerimônia de abertura olímpica constituem declarações políticas dirigidas ao público interno e ao mundo. Imagens da perfeição.

Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br

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