Vocês sabem: há mais bolivarianos e evistas na imprensa brasileira do que na Venezuela ou na Bolívia. A isso se somam os blogs dos “camaradas” da esquerda nativa, e se forma, então, uma corrente em favor de Evo Morales, o índio de araque que está forçando as condições ideais para uma ditadura em seu país. Entendo que os nossos "democratas" sejam tão solidários a Evo: de longe, o inferno pode parecer uma alternativa, uma aposta na diversidade. Somos todos evistas, é claro — desde que longe da Bolívia.
A democracia pode ser muitas coisas a depender de por onde você comece a examiná-la. Quem iluminou um ângulo importante do sistema foi Gilmar Mendes, com a clarividência habitual: a democracia é o regime em que não existe Poder soberano. Bingo! Qualquer um dos três Poderes que passe por uma hipertrofia diminui a liberdade do jogo. Iluminemos outro aspecto: na democracia, prevalece a vontade da maioria, mas é preciso respeitar os direitos das minorias. Mais um: na democracia, mesmo as leis votadas no Parlamento não podem solapar as bases que garantem a coesão social — ou o país caminha para a baderna. Mais um: na democracia, é preciso tomar cuidado para que a “justiça social” (seja lá o que isso signifique) não vire luta campal.
Como vocês percebem, é possível fazer uma lista realmente interminável do que é, na prática, uma democracia. E isso explica por que os regimes democráticos são tão desiguais entre si, com leis muito próprias. Mas uma coisa as democracias estáveis têm em comum — e desafio alguém a provar que não é assim: respeito à representação. Em vez da consulta direta ao povo — salvo casos excepcionalíssimos (e não venham me falar da Suíça, com dois terços da população da cidade de São Paulo) —, respeitam-se os espaços firmados pela divisão clássica dos Poderes.
Notem o método de Chaves, Evo e Rafael Correa. Todos, invariavelmente, começaram por agredir o princípio da independência, sob a justificativa de que os Poderes estavam contaminados por isso e aquilo. Até pode ser verdade. Mas como se resolve a questão? Atropelando as instâncias representativas? Chávez conseguiu se consolidar com a sua meia-ditadura — vamos ver até quando. Correa vai de crise em crise levando a vida. Mas também não parece ter futuro. Evo encontrou uma resistência mais sólida e, vê-se, tão disposta a partir para o confronto quanto ele próprio nos tempos de líder dos cocaleiros.
Lastimo os métodos da oposição boliviana — e, à diferença do que dizem os tontos-maCUTs, não estou “apoiando” o movimento; até porque seria ridículo, por indiferente, eu apoiar ou não, né? Mas não vou ficar aqui derramando as minhas lágrimas piedosas pelo “democrata” Evo Morales, porque democrata ele não é. Não cairei no erro de muitos articulistas brasileiros que se perguntavam, há coisa de cinco ou seis anos: “Mas o que Chávez faz de errado? Ele sempre consegue tudo por meio de eleições”.
Evo Morales é um depredador de instituições, triste manifestação do que pode haver de pior na América Latina. Não me venham com a conversa mole — não aqui; quem quiser fazer assim, que procure a sua turma — de que, na Bolívia de hoje, os “fascistas” lutam contra os “democratas”. Porque e preciso provar as duas coisas: que os oposicionistas são fascistas e que Evo é democrata.
Quanto à comparação com o Chile... Dizer o quê? As pessoas gostam de voltar àquela má poesia. É, não deixa de haver certa similaridade. Allende ganhou eleições no modelo “burguês” para tentar criar o socialismo pela via cartorial, aliando-se à extrema esquerda doidivanas. Pode-se ver algo parecido na mímica de Evo. E só. Todo o resto é só diferença. O Chile foi um capítulo da Guerra Fria, o mais agudo, vivido na América do Sul. Guerra Fria que não há mais. Mais um pouco, e os viciados em paralelismos históricos vão procurar, como Evo procura, a infiltração da CIA no movimento da oposição boliviana.
O presidente da Bolívia ainda não desceu o pau nos oposicionistas porque está tentando reunir forças para tanto — e isso quer dizer que ele não as tem hoje. Caso venha a obter a concordância do Exército para reprimir pra valer o movimento, isso implicará se tornar refém da histórica baderna militar boliviana. E, nessa hipótese, seria realmente uma obra e tanto, não é? O “índio” Evo Morales, que prometeu a revolução civilista, viraria um boneco no colo dos milicos. Faria sentido. Ele sabotou qualquer chance de se criar um governo civil estável quando estava na oposição. Demonstrou ser muito eficaz para derrubar governos. Ele só não sabe como manter um: o seu próprio.
O leitor acredita que me pegou numa grave contradição
A democracia pode ser muitas coisas a depender de por onde você comece a examiná-la. Quem iluminou um ângulo importante do sistema foi Gilmar Mendes, com a clarividência habitual: a democracia é o regime em que não existe Poder soberano. Bingo! Qualquer um dos três Poderes que passe por uma hipertrofia diminui a liberdade do jogo. Iluminemos outro aspecto: na democracia, prevalece a vontade da maioria, mas é preciso respeitar os direitos das minorias. Mais um: na democracia, mesmo as leis votadas no Parlamento não podem solapar as bases que garantem a coesão social — ou o país caminha para a baderna. Mais um: na democracia, é preciso tomar cuidado para que a “justiça social” (seja lá o que isso signifique) não vire luta campal.
Como vocês percebem, é possível fazer uma lista realmente interminável do que é, na prática, uma democracia. E isso explica por que os regimes democráticos são tão desiguais entre si, com leis muito próprias. Mas uma coisa as democracias estáveis têm em comum — e desafio alguém a provar que não é assim: respeito à representação. Em vez da consulta direta ao povo — salvo casos excepcionalíssimos (e não venham me falar da Suíça, com dois terços da população da cidade de São Paulo) —, respeitam-se os espaços firmados pela divisão clássica dos Poderes.
Notem o método de Chaves, Evo e Rafael Correa. Todos, invariavelmente, começaram por agredir o princípio da independência, sob a justificativa de que os Poderes estavam contaminados por isso e aquilo. Até pode ser verdade. Mas como se resolve a questão? Atropelando as instâncias representativas? Chávez conseguiu se consolidar com a sua meia-ditadura — vamos ver até quando. Correa vai de crise em crise levando a vida. Mas também não parece ter futuro. Evo encontrou uma resistência mais sólida e, vê-se, tão disposta a partir para o confronto quanto ele próprio nos tempos de líder dos cocaleiros.
Lastimo os métodos da oposição boliviana — e, à diferença do que dizem os tontos-maCUTs, não estou “apoiando” o movimento; até porque seria ridículo, por indiferente, eu apoiar ou não, né? Mas não vou ficar aqui derramando as minhas lágrimas piedosas pelo “democrata” Evo Morales, porque democrata ele não é. Não cairei no erro de muitos articulistas brasileiros que se perguntavam, há coisa de cinco ou seis anos: “Mas o que Chávez faz de errado? Ele sempre consegue tudo por meio de eleições”.
Evo Morales é um depredador de instituições, triste manifestação do que pode haver de pior na América Latina. Não me venham com a conversa mole — não aqui; quem quiser fazer assim, que procure a sua turma — de que, na Bolívia de hoje, os “fascistas” lutam contra os “democratas”. Porque e preciso provar as duas coisas: que os oposicionistas são fascistas e que Evo é democrata.
Quanto à comparação com o Chile... Dizer o quê? As pessoas gostam de voltar àquela má poesia. É, não deixa de haver certa similaridade. Allende ganhou eleições no modelo “burguês” para tentar criar o socialismo pela via cartorial, aliando-se à extrema esquerda doidivanas. Pode-se ver algo parecido na mímica de Evo. E só. Todo o resto é só diferença. O Chile foi um capítulo da Guerra Fria, o mais agudo, vivido na América do Sul. Guerra Fria que não há mais. Mais um pouco, e os viciados em paralelismos históricos vão procurar, como Evo procura, a infiltração da CIA no movimento da oposição boliviana.
O presidente da Bolívia ainda não desceu o pau nos oposicionistas porque está tentando reunir forças para tanto — e isso quer dizer que ele não as tem hoje. Caso venha a obter a concordância do Exército para reprimir pra valer o movimento, isso implicará se tornar refém da histórica baderna militar boliviana. E, nessa hipótese, seria realmente uma obra e tanto, não é? O “índio” Evo Morales, que prometeu a revolução civilista, viraria um boneco no colo dos milicos. Faria sentido. Ele sabotou qualquer chance de se criar um governo civil estável quando estava na oposição. Demonstrou ser muito eficaz para derrubar governos. Ele só não sabe como manter um: o seu próprio.
O leitor acredita que me pegou numa grave contradição
O leitor Silvio acha que me pegou numa contradição mortal. Reproduzo porque, a exemplo dele, há dezenas de comentários assim (segue, conforme ele escreveu, em vermelho; eu continuo no mundo azul...):
Mais uma provocação a você, Reinaldo. Quando a "desordem" ocorre no Brasil, de qualquer forma de que seja (quase sempre de grupos como MST e outros), sua posição é: estão contra a lei, pau neles! Você NUNCA analisa a questão por outras perspectivas (política, sociológica...), o que vale é o ordenamento jurídico (positivo). Agora, para se posicionar em relação à crise boliviana, você argumenta por razões políticas e sociológicas. Ora, parece mais coerente você dizer apenas: os opositores de Evo passaram dos limites legais, pau neles! Não é uma questão Evo vs. Opositores. É a lei (válida e vigente) na Bolívia contra os opositores. Se for preciso o auxílio do exército para tanto, que assim se faça (eles estão lá para isso, para defender a ordem constitucional do Estado boliviano).
Publicar Recusar (Silvio) 16:15
Comento
Pois é, caro Sílvio, esta é a cilada em que alguns gostariam que todos caíssem. Mas não caio. Aliás, uma das razões de ser do meu blog é não ceder a essa, perdoe-me, conversa mole. Sabe por que “pau” no MST quando ele transgride a lei? Sabe por que “pau” nas Farc? Porque sabotam dois estados plenamente democráticos — e um dos fundamentos da democracia é o cumprimento da lei.
Lamento, caro Sílvio. Não considero que o governo Evo Morales ou o governo Chávez se encontrem nessa categoria. Como costumo brincar às vezes, não é preciso ler O Príncipe para entender certas coisas. Basta O Pequeno Príncipe: se você pedir ao povo que se lance ao mar — no caso da Bolívia, no lago Titicaca (esta magnífica onomatopéia!) —, ele se revolta. A coisa que as esquerdas mais defendem é o chamado “direito à rebelião”, não é mesmo?
A diferença entre mim e elas é que elas costumam defender o “direito à rebelião” contra a democracia também. E eu só defendo o “direito à rebelião” contra as tiranias. Sacou?
De todo modo, que fique claro: tivesse eu direito de voto, não endossaria os métodos da oposição boliviana. Até porque eles são contraproducentes. A seguir nesse rumo, em breve, mesmo a parte da população eventualmente hostil a Evo muda de lado. Ninguém gosta de baderna.
Mais uma provocação a você, Reinaldo. Quando a "desordem" ocorre no Brasil, de qualquer forma de que seja (quase sempre de grupos como MST e outros), sua posição é: estão contra a lei, pau neles! Você NUNCA analisa a questão por outras perspectivas (política, sociológica...), o que vale é o ordenamento jurídico (positivo). Agora, para se posicionar em relação à crise boliviana, você argumenta por razões políticas e sociológicas. Ora, parece mais coerente você dizer apenas: os opositores de Evo passaram dos limites legais, pau neles! Não é uma questão Evo vs. Opositores. É a lei (válida e vigente) na Bolívia contra os opositores. Se for preciso o auxílio do exército para tanto, que assim se faça (eles estão lá para isso, para defender a ordem constitucional do Estado boliviano).
Publicar Recusar (Silvio) 16:15
Comento
Pois é, caro Sílvio, esta é a cilada em que alguns gostariam que todos caíssem. Mas não caio. Aliás, uma das razões de ser do meu blog é não ceder a essa, perdoe-me, conversa mole. Sabe por que “pau” no MST quando ele transgride a lei? Sabe por que “pau” nas Farc? Porque sabotam dois estados plenamente democráticos — e um dos fundamentos da democracia é o cumprimento da lei.
Lamento, caro Sílvio. Não considero que o governo Evo Morales ou o governo Chávez se encontrem nessa categoria. Como costumo brincar às vezes, não é preciso ler O Príncipe para entender certas coisas. Basta O Pequeno Príncipe: se você pedir ao povo que se lance ao mar — no caso da Bolívia, no lago Titicaca (esta magnífica onomatopéia!) —, ele se revolta. A coisa que as esquerdas mais defendem é o chamado “direito à rebelião”, não é mesmo?
A diferença entre mim e elas é que elas costumam defender o “direito à rebelião” contra a democracia também. E eu só defendo o “direito à rebelião” contra as tiranias. Sacou?
De todo modo, que fique claro: tivesse eu direito de voto, não endossaria os métodos da oposição boliviana. Até porque eles são contraproducentes. A seguir nesse rumo, em breve, mesmo a parte da população eventualmente hostil a Evo muda de lado. Ninguém gosta de baderna.