Trecho de Satã, Uma Biografia, de Henry Ansgar Kelly 1. O Antigo Testamento i.i O primeiro satã sobrenatural na Bíblia Hebraica: O Anjo de Javé e um Asno Falante Para alguns leitores deste livro poderá ser uma surpresa a inexistência do mal, do Diabo ou de Diabo no Livro do Gênesis. A interpretação da Serpente no Jardim do Éden como sendo o Diabo é uma dessas adaptações a posteriori de informações antigas com idéias recentes que mencionei na Introdução. Mais adiante, veremos algumas das maneiras pelas quais essas transformações aconteceram. Quando examinamos o início do Gênesis com olhar atento, percebemos que não há criação ou queda de Anjos, mas apenas uma Serpente falante muito esperta (vamos, no entanto, tratá-la com maiúscula, pois é claramente única). Ao final do relato de Adão e Eva, contudo, tomamos co-nhecimento de que os "Querubins" estão localizados ao leste do Éden, com uma espada flamejante entre eles, para impedir o acesso à Árvore da Vida. Porém estes Querubins parecem bas-tante inanimados, e talvez significassem estátuas tipo esfinges. Quando os Querubins estão vivos, como no Livro de Ezequiel, não são Anjos e sim animais trabalhadores do mundo dos Céus, como os cavalos que puxam as carruagens celestiais e servem de montaria para os Anjos. Mais adiante no Gênesis, antes da história de Noé, há o relato sobre os Filhos de Deus que acasalaram com mulheres humanas con-cebendo os heróis da Antiguidade (Gn 6,1-4). Na literatura recente, como veremos, esses Filhos de Deus serão identificados como Anjos, chamados Guardiões, que violaram sua função de guardião, pecaram e foram punidos. Isso é apenas uma queda histórica dos Anjos mencionada na Bíblia. Ela é relembrada novamente no Novo Testamento, na Epístola de Judas e na Segunda Epístola de Pedro. Os primeiros onze capítulos do Gênesis, que contam a Criação e o Dilúvio, não são referidos no restante do Antigo Testamento, e pa-recem uma "prequela", ou seja, uma introdução escrita mais tarde. Em outras palavras, outra adaptação a posteriori, uma adaptação feita dentro da própria Bíblia. O restante do Gênesis, começando com a história de Abraão, é, ao contrário, constantemente citado nos livros seguintes. É aqui que o termo "Anjo" é usado pela primeira vez. É um termo fun-cional, malak em hebreu original, que significa "mensageiro" ou "emissário". Aparece na Septuaginta grega como angelos (de fato, aggelos), mas na Vulgata Latina, angelus ou nuntius, dependendo se os tradutores interpretam o texto original como se referindo a um emissário sobrenatural ou humano. Os Anjos não transmitem uma mensagem em si no Livro do Gênesis, mas podemos dizer com segurança que sempre "fazem uma declaração". Isto é verdade mesmo para os Anjos que subiam e desciam uma escada na visão de Jacó. Aqui a declaração ange-lical serve apenas como pano de fundo para o próprio Javé, que fala diretamente a Jacó (Gn 28,12-16). Diversos mensageiros apa-receram antes no Gênesis, quando três homens visitaram Abraão para anunciar que sua mulher iria conceber um filho. No início, a impressão é de que os três homens são Javé, ou representam Javé (Gn 18,1-21), mas logo parece que um é Javé e os outros dois são identificados como "Anjos" (Gn 18,22; 19,1). Algo similar parece acontecer como o misterioso "Mensa-geiro de Javé" (Malak yhwh), que ora é um porta-voz de Javé ora é o próprio Javé. Uma de suas aparições mais interessantes é relatada no Livro dos Números, o quarto livro da Torá, ou Pentateuco. O Gênesis conclui com José e seus irmãos no Egito, o Êxodo trata de Moisés conduzindo seus descendentes para fora do Egito em direção ao deserto do Sinai, enquanto o Levítico e Números falam de suas vidas no deserto. Em realidade, o nome hebreu do Livro dos Números é "No Deserto". Quando os israelitas acampam na planície de Moab, além do Jordão a partir de Jericó, os moabitas pedem proteção contra eles propondo contratar um profeta de ocasião chamado Balaão. O rei moabita, Balac, envia mensageiros até ele, pede que os acom-panhe até Moab e rogue uma maldição contra os intrusos. Em resposta, Balaão diz que primeiro deve consultar a Deus - referido por seus dois nomes principais, Javé e Eloim. Ele lhes diz: "Eu lhes trarei a resposta, como Javé me falar". Eloim vem então a ele (possivelmente em sonho) e lhe pergunta quem são esses homens. Balaão responde que são moabitas que lhe pedem que amaldiçoe os recém-chegados do Egito. Eloim lhe diz que não vá, pois esse povo é abençoado; Balaão, obedecendo, diz aos mensageiros que Javé lhe proibira de ir com eles. Quando os emissários moabitas retornam a segunda vez, Balaão diz que buscará novas orientações de Javé, e desta vez Eloim lhe diz que vá com eles, mas que faça apenas o que Ele lhe ordenar que faça. Balaão então encilha sua velha jumenta e parte com os moabitas (Nm 22,1-21). Neste ponto, os estudiosos percebem uma mão diferente no texto, mas não chegam a um acordo sobre sua fonte. Alguns dizem que a primeira metade do capítulo é escrita pelo eloísta (o autor hipotético que favorece o nome de Eloim para Deus), e a partir do verso 22 é o relato do javista mais velho (que obviamente em geral se refere a Deus como Javé), embora na verdade, como acabei de observar, ambos os nomes divinos apareçam na primeira metade do capítulo, o mesmo acontecendo na segunda metade. Uma das razões para se atribuir a segunda metade ao javista é por retratar um animal falando, como a Serpente no Gênesis 3 (mas, como mencionei antes, há uma boa razão para pensar que a história da Serpente, com todos os outros capítulos próximos, não tenha nenhuma relação com o ja-vista, sendo uma parte do Gênesis composta mais recentemente). Outra idéia, favorecida pelos discípulos de Frank Moore Cross em Harvard, é que o javista que escreve a primeira parte, um escritor posterior, da época do cativeiro na Babilônia, é quem adiciona a parte referente à jumenta. Este último escritor é co-nhecido pelo complicado nome de "Historiador Deutoronômico", mas o chamaremos por "h.d.". Isto localiza a composição da his-tória por volta de 560 a.C.5 De qualquer maneira, a história continua: "A partida de Balaão despertou a ira de Eloim (ou "a ira de Javé" - as duas formas aparecem), e o Anjo de Javé pôs-se-lhe no caminho como um satã contra ele" (Num. 22.22). Este foi um mo-mento significativo. Deus havia se oposto às ações dos homens antes, porém agora, pela primeira vez, Ele, ou Sua manifestação angelical, é caracterizado por um adversário, um Satã. Entretanto, a oposição divina não se dá com suavidade. Como mencionei, Balaão está montado em sua jumenta, e dois de seus servos o acompanham a pé. Porém, apenas a jumenta pode ver satã de pé com sua espada na mão. Ela desvia de repente da es-trada adentrando o campo, o que leva Balaão a golpeá-la. Quando a jumenta e Balaão finalmente retornam para a estrada, esta se estreitou com paredes de vinhedos em ambos os lados. A jumenta dá uma guinada novamente, e arrasta o pé de Balaão contra uma das paredes, e Balaão a golpeia mais uma vez. O Anjo de Javé se adianta ainda mais e se coloca numa parte ainda mais estreita da estrada. Quando a jumenta percebe que não tem como dar a volta, ela simplesmente se deita com Balaão ainda montado. A esta altura Balaão estava completamente irado, e ele a golpeia intensamente com seu bastão. Finalmente, Javé dá à jumenta o poder da fala, e ela per-gunta a Balaão: "O que eu lhe fiz para que me golpeasse essas três vezes?". Balaão, sem mostrar surpresa a essa súbita capacidade de fala de sua jumenta favorita, replica: "Porque você me fez de tolo! Se eu tivesse uma espada em minha mão, eu a mataria agora mesmo!". A jumenta retrucou: "Não sou eu a sua jumenta, na qual você tem cavalgado toda sua vida até hoje? Eu o tenho tratado dessa maneira?". A única resposta possível de Balaão foi: "Não". Javé então revê a estratégia de aparecer apenas para a ju-menta e não para Balaão, e Ele abre os olhos de Balaão. Balaão vê, então, de repente, o Anjo de Javé de pé na estrada, com a espada na mão, desmonta da jumenta e se prostra no chão. O Anjo diz: "Por que você bateu três vezes em sua jumenta? Eu vim como satã, para interromper sua jornada, que me desagrada. A jumenta me viu e três vezes fugiu de mim e salvou sua vida. Se ela não tivesse feito isto, eu o teria matado e a teria deixado viva". Balaão responde: "Eu pequei, mas foi apenas porque não sabia que você estava ali para me encontrar. Se isso o desagrada, eu voltarei para casa". O Anjo de Javé respondeu: "Não, está bem, siga com os homens, mas fale apenas o que eu ordenar". 5 Representando o pensamento da escola de Harvard sobre "h.d." (Historiador Deutoronômico) encontramos Brian Peckham, History and prophecy: the de-velopment of late judasan literary traditions (ab Reference Library, Nova York: Doubleday, 1993). Uma compilação de ensaios sobre a questão é Those elusive deuteronomists, ed. Linda S. Shearing e Steven L. McKenzie (Sheffield: Sheffield Academic Press, 1999). Recomendo também The Anchor Bible Dictionary, 6 vols. (Nova York, 1992), e os comentários da Anchor Bible sobre os livros individuais (todos publicados pela Doubleday). Existem, claro, outros comentários impor-tantes da Bíblia, que estão listados nos volumes da Anchor Bible (ab). |