"Antes, (estava) o Chávez, (que) era amigão do Lula. Quando eles se encontravam, destravavam os pagamentos. Agora as coisas se complicaram." Assim se expressou uma fonte citada em matéria do jornal Valor Econômico, na edição de 5/3, sobre os pagamentos em atraso a empresas brasileiras na Venezuela. No caso das grandes empreiteiras, o montante alcançaria US$ 2 bilhões. As complicações atuais derivam do aprofundamento da crise econômica no país vizinho e da perda do canal político-diplomático privilegiado entre os dois ex-presidentes. A declaração espanta não por revelar o que não se soubesse, mas por indicar até que ponto chegou a mistura entre interesses políticos e empresariais na política externa brasileira para a América do Sul nos últimos dez anos.
O governo Dilma administra mal, sem estratégia alternativa, o legado de problemas herdados do hiperativismo ad hoc do seu antecessor imediato. A influência do governo brasileiro na Venezuela é declinante. Não ousa fazer-se ouvir de maneira mais assertiva pelo governo de Maduro e é malvisto pelas oposições.
O mesmo se pode dizer da influência do governo brasileiro na Bolívia. As relações dos dois países dependiam muito da interlocução pessoal entre Lula e Evo Morales. A estreita relação direta de ambos não impediu Morales de mandar o Exército boliviano ocupar militarmente a refinaria da Petrobrás nem evitou que o Brasil se visse envolvido em conflito por causa da controversa construção de uma estrada que corta um parque nacional indígena. Melhor teria sido que as agências do Estado brasileiro - a começar pelo BNDES, que concedeu empréstimo a uma empreiteira brasileira encarregada da obra - tivessem avaliado o risco ambiental, político e financeiro do projeto, sem pressões da "diplomacia presidencial". Também no caso da Bolívia, passamos do hiperativismo ad hoc, com Lula, à vacuidade da política externa, sob Dilma. Ali estamos sem embaixador desde o início do segundo semestre do ano passado.
Tampouco se pode dizer que a influência brasileira tenha crescido na Argentina. Enredados na administração pontual dos recorrentes entraves da relação bilateral, sem um novo horizonte para o Mercosul, salvo no plano retórico, o Brasil e suas empresas sofreram, como quaisquer outros, às vezes até mais, as consequências da gestão arbitrária dos governos Kirchner, apesar da azeitada relação entre os presidentes dos dois países, especialmente na vigência da dupla Lula-Néstor.
A perda de influência do Brasil na América do Sul não se limita a esses três países, onde supostamente investimos nossos melhores esforços na última década. Na verdade, ela é um fenômeno generalizado na região. O governo fracassou no propósito de liderar o bloco bolivariano e, em torno desse eixo, organizar a integração sul-americana. Ao mesmo tempo, assistiu à formação da Aliança do Pacífico, compreendendo três países sul-americanos - Chile, Peru e Colômbia - e o México, em contraponto à política externa brasileira de estruturar a integração regional a partir de um Mercosul formalmente ampliado (e substantivamente enfraquecido).
Sem o dizer e muito menos admitir, o próprio governo Dilma já emite sinais de que reconhece a necessidade de mudar a política externa, a exemplo do empenho em fazer avançar o acordo do Mercosul com a União Europeia (UE). O movimento, porém, é reativo e incompleto. O novo esforço em direção aos europeus resulta antes do temor diante dos riscos que novos acordos da UE com grandes parceiros do Norte - de imediato com o Canadá e mais à frente com os EUA - colocam para as exportações brasileiras do que de uma revisão mais ampla da política Sul-Sul que guiou o Brasil nos últimos dez anos. No plano regional, embora menos disposto a acomodar as idiossincrasias da Argentina, o governo permanece preso a um Mercosul que não vai nem vem. A matriz de pensamento continua a mesma. Além disso, Dilma nem delega nem assume o papel de liderança na área de política externa. O fato é que precisamos de uma nova política externa, e não de remendos na atual.
Uma nova política externa requer estabelecer o papel do Brasil na região em outros termos, para gerar regras estáveis e horizontes previsíveis nas relações entre os Estados, e não apenas entre governos eventualmente afins. Essa mudança deve ser feita de olho na nova configuração da economia e da geopolítica globais. Não podemos aceitar um novo Tratado de Tordesilhas e deixar que se aprofunde a divisão entre a América do Sul do Atlântico e a do Pacífico. É contra os interesses nacionais de longo prazo que parte importante da região passe a orbitar fundamentalmente em torno das relações econômicas e geopolíticas que se vão adensando velozmente na grande bacia do Pacífico, sob a coexistência competitiva de dois gigantes, China e EUA. O Brasil não tem como anular essa tendência, mas pode contrabalançá-la.
Como já apontou corretamente o experimentado embaixador José Botafogo Gonçalves, é preciso avançar de modo mais radical e rápido na derrubada de barreiras tarifárias e principalmente não tarifárias ao comércio e aos investimentos entre o Brasil e os países sul-americanos do Pacífico. Trata-se de um passo na direção correta, mas não será o bastante. Devemos voltar a pensar no espaço latino-americano e dar prioridade a um amplo acordo de comércio e investimentos com o México, como parte de um processo mais amplo de inserção do Brasil na economia internacional, o que não implica lançar por terra o Mercosul.
Não é apenas por questões econômicas que devemos fazê-lo. A aproximação entre Brasil e México pode dar a ambos e à América Latina melhores condições para lidar com temas relativos à segurança e à política das Américas e do mundo a partir de perspectivas e realidades distintas dos dois gigantes globais.
*Sergio Fausto é superintendente executivo do iFHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, é membro do Gacint-USP.
Fonte: O Estado de S. Paulo