Jornal O Globo
O passado que a ditadura tanto quis esconder reapareceu com toda força, com a novidade de que agora quem revela as estarrecedoras atrocidades são os próprios algozes
Éramos quatro casais num jantar quando surgiu o tema do atentado às Torres Gêmeas, de NY, em 2001. O "jogo da memória" foi então saber o que cada um estava fazendo no momento em que recebeu a notícia. Ao contrário do choque imediato que então meus amigos experimentaram, minha ficha custou a cair, simplesmente porque, quando me mandaram ligar a TV naquela manhã, sem dizer por que, achei que a cena que vi era de um filme-catástrofe. Desliguei e só depois, no noticiário, me dei conta de que se tratava do maior ataque terrorista do século. Com os 50 anos do nosso golpe militar, que também foi tema da conversa, quase não tenho feito outra coisa senão responder à pergunta feita por colegas ou por estudantes de jornalismo: "O que você estava fazendo em 31 de março/1º de abril de 64?" Ser testemunha ocular da História, que é outro nome para a velhice, dá nisso. Há dez anos, manifestei minha surpresa por tantas análises e revisitas, sem imaginar que era apenas um trailer da overdose de agora. Como se explica que isso aconteça no país que, como se diz, sofre de amnésia crônica?Será que é porque o trauma sofrido talvez não seja cicatriz, mas ainda ferida? Não sei. O fato é que o passado que a ditadura militar tanto quis esconder da memória nacional reapareceu com toda força, com a novidade de que agora quem revela as estarrecedoras atrocidades cometidas são os próprios algozes, não mais as vítimas. O mais recente capitulo dessa série de horror foi a confissão de um coronel-psicopata à Comissão da Verdade, relatando sadicamente como se torturava, matava, esquartejava e sumia com os corpos do presos políticos. De maneira didática, friamente, sem qualquer arrependimento, contou como quebravam as arcadas dentárias e cortavam seus dedos para que não fossem identificados.
Para justificar o método, ele estabeleceu com um membro da comissão um diálogo surrealista, como se o seu interlocutor fosse íntimo conhecedor da prática criminosa: "Quando o senhor vai se desfazer de um corpo, quais são as partes que, se acharem o corpo, podem determinar quem é a pessoa?", fez a absurda pergunta, para ele mesmo responder: "Arcada dentária e digitais, só."
Em matéria de barbárie, aqueles militares, quem diria, foram os precursores dos atuais "tribunais do tráfico", que fazem o mesmo com os prisioneiros.
Em breve, um evento intelectual da pesada: o "Simpósio Internacional Sergio Rouanet — 80 anos". Para debater temas como modernidade, democracia, literatura, psicanálise em tempos "pós-freudianos e pós-marxistas" virão professores e especialistas de várias universidades do exterior, além das brasileiras.