CORREIO BRAZILIENSE - 26/03
O sucesso do Plano Real (que completou 20 anos) e da estabilidade de nossa moeda está associado ao saneamento de nosso sistema financeiro, com base no Programa de Estímulo à Reestruturação (Proer) e ao fortalecimento do sistema financeiro nacional (SFN), entre 1994 e 1998. À época, foram liquidados alguns grandes bancos que se tornaram insolventes. Graças a esse pilar - a credibilidade do SFN -, o país suportou a crise financeira global iniciada em 2008, que abalou a economia dos Estados Unidos e, na sequência, a mundial.
Sem a existência de bancos saudáveis e de um Banco Central (BC) zeloso para que isso se mantenha, essa blindagem não existiria. Esse é um aspecto pouco observado quando se discute as diferenças dos expurgos inflacionários dos planos econômicos do início das décadas de 1980 e 1990, períodos em que sucessivos planos de estabilização da moeda fracassaram.
De um lado, estão os poupadores, que requerem a correção de seus saldos monetários por determinado indicador de inflação; de outro, as instituições financeiras, que cumpriram as determinações das regras de transição de moeda pelas circulares, resoluções e regras estabelecidas pelo BC. Vale a pena relembrar: desde o fim da ditadura militar, o Brasil experimentou diversos planos econômicos. Todos eles foram constituídos por leis, ou seja, por uma norma ou conjunto de normas que determinam direitos e obrigações individuais e coletivos, aos quais os bancos obedecem, conforme o inciso segundo da Constituição Federal: Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".
Cabe ao BC, por força de lei, punir pessoas físicas ou jurídicas que não cumprem as determinações emanadas do Conselho Monetário Nacional (CMN), órgão deliberativo máximo do SFN. Para enquadramento às normas legais ou regulamentares do SFN, a Lei nº 4.595 confere ao BC poder para disciplinar ou punir instituições supervisionadas ou pessoas físicas, por meio de instrumentos que vão desde medidas cautelares até a liquidação da instituição quando constatada a infração. Diversas instituições foram punidas com liquidação extrajudicial por não cumprirem as determinações do BC.
Historicamente, a palavra dilema está referenciada ao grande escritor inglês William Shakespeare, na frase: "Ser ou não ser, eis a questão", na tragédia Hamlet. É nessa condição que se encontram os bancos ao aplicar os índices utilizados nos expurgos inflacionários para corrigir o saldo monetário das cadernetas de poupança à época dos planos. Ou seja, cumpriram as determinações regulamentares impostas pelo BC, que, por sua vez, cumpriu determinações das leis que impuseram os planos econômicos. Todos visavam o bem maior da população brasileira por meio de medidas para equilibrar o país econômica e financeiramente. Não cumprir as decisões do BC significava simplesmente deixar de existir.
O dilema hamletiano ressurge nas discussões dos expurgos inflacionários. As estimativas dos valores das indenizações, segundo as diferentes instituições envolvidas, vão de R$ 20 bilhões (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, Idec) a R$ 150 bilhões (BC). Ninguém sabe o tamanho verdadeiro dos expurgos, mas não é isso que está em questão. O que está em jogo é a credibilidade de contratos e regras ditadas pelo governo, com apoio nas leis do país.
Justiça significa respeito à igualdade de todos os cidadãos. É uma palavra que vem do latim. Tem o objetivo de manter a ordem social por meio da preservação dos direitos em sua forma legal. Termo abstrato, designa o respeito pelo direito de terceiros. A Justiça pode ser reconhecida por mecanismos automáticos ou intuitivos nas relações sociais, ou por mediação pelos tribunais.
Mexer com o pacto firmado para acabar com a hiperinflação é romper a cadeia de solidariedade criada entre os agentes econômicos, do trabalhador assalariado ao megainvestidor estrangeiro, todos beneficiados pela estabilidade da moeda e pela existência de um sistema financeiro robusto e confiável. Imaginem, por exemplo, se um investidor estrangeiro quiser resgatar aquilo que não recebeu quando o ministro Dilson Funaro, no Ministério da Fazenda, decretou a moratória da dívida externa. Ou que os credores internacionais entrem com ação judicial para receber de volta o desconto concedido na renegociação da dívida externa no tempo do Plano Brady.
Imaginem credores pedirem de volta essa mesma diferença nos financiamentos imobiliários que foram lastreados na poupança? Penso que os ministros do Supremo tribunal Federal (STF), que vão decidir a questão, precisam examinar o assunto do ponto de vista da estabilidade institucional do país, não com base em valores não mensuráveis a priori, embora de antemão se saiba que são astronômicos. A análise de valores monetários, neste caso, é secundária do ponto de vista da decisão do Supremo. O fundamental é que a Justiça prevaleça.