ESTADÃO
PARIS - Não foi nenhuma surpresa: a Crimeia votou maciçamente a favor de sua anexação à Rússia. A bem da verdade, já há alguns dias a disputa entre a Rússia e o Ocidente deixara de nos brindar fatos surpreendentes desde que, após o triunfo dos rebeldes pró-Europa e democratas da Praça Maidan, em Kiev, o líder russo Vladimir Putin decidiu resolver a situação e começou a fazer um jogo cujas regras os ocidentais desconheciam, ou pelo menos se recusavam a conhecer.
Essas regras eram as da força, da mentira, do cinismo, do ardil, da má-fé. O russo tinha alguns trunfos. De início, o mistério, porque as decisões saíam bruscamente. E, em seguida, a rapidez, porque Putin e seu bando reagiam imediatamente quando os ocidentais, atolados em seus regulamentos, sua moral e seus escrúpulos, estavam sempre atrasados.
Havia sempre algo de patético nesse confronto. Putin avançava seus peões às ocultas, sem pedir conselho a ninguém, sem avisar quem quer que fosse. Os "democratas" ocidentais faziam conferências, convocavam entrevistas para anunciar aos russos o que pretendiam fazer, caíam em contradição, produziam uma enorme cacofonia, preocupavam-se em realizar reuniões em todas as partes da Europa e da América para harmonizar os pontos de vista dos presidentes da Letônia, da Itália e de Chipre. Aliás, devemos acrescentar também o de Barroso, que reina sobre a União Europeia, em Bruxelas, e de alguns outros de "miolo mole".
Esse é o psicodrama controlado pelo Kremlin que hoje produz uma ruptura no mundo civilizado. Essa brecha é a possibilidade de anexar um país, ou um pedaço de país, menosprezando o direito internacional. Esse é o fato novo e cria um precedente detestável. Evidentemente, os russos rejeitam tal argumento, lembrando aos ocidentais que Kosovo, região que pertenceu à Iugoslávia e depois à Sérvia, também decretou, como a Crimeia fez no domingo, sua independência em fevereiro de 2008 (confirmada em 22 de julho de 2010). Esse processo foi aceito e encorajado pela comunidade internacional e ratificado pela Corte Internacional de Justiça, em Haia. "Não há a menor relação com o caso", diz o jurista Pierre Hassner. "Em Kosovo, houve a repressão sérvia, crimes em massa contra a humanidade, a instauração, em junho de 1999, de um protetorado internacional sob a égide da ONU."
O fato de a Rússia ter sequestrado a Crimeia (a bem da verdade, com o consenso entusiástico da população da Crimeia que é de língua russa) abriu uma terrível caixa de Pandora. Após essa data, 16 de março de 2014, as fronteiras cessam de ser sagradas. O "golpe da Crimeia" poderá se reproduzir aqui ou acolá, no mundo ocidental, na Rússia ou na China. Aliás, é por isso que, na ONU, os chineses, em vez de aprovarem como fazem quase sempre a posição da Rússia, preferiram se abster.
A prudência de Pequim é eloquente: e se o Tibete, uigures e outras minorias chinesas seguirem o exemplo da Crimeia e se desligarem do império chinês? Agora, o Ocidente pretende fulminar com sanções. Atingir a Rússia em sua economia, adotar sanções contra alguns responsáveis de segundo escalão (evidentemente, não Putin).
A ideia é que, com uma guerra comercial, a Rússia tem mais a perder do que o Ocidente. Exato. Mesmo no que se refere ao gás, a Rússia pode prejudicar o fornecimento da Europa (a Alemanha é muito vulnerável), mas o que fará então com seu gás, ou seja, com seu principal trunfo econômico? Não será fácil deflagrar essa guerra econômica e ela só produzirá seus efeitos no longo prazo.
No que se refere a um ponto, Putin não conquistou seus objetivos. A grande ideia que incendiou a Praça Maidan, em Kiev, era impedir que a Ucrânia se aproximasse da UE. Nos planos de Putin, a Ucrânia deveria constituir o elo mais forte de sua União Eurasiática, que ele quer criar para compensar o desaparecimento do império soviético e por uma parte dos russos.
O sucesso dos insurretos da Praça Maidan e a fuga vergonhosa dos dirigentes ucranianos pró-russos destruíram esse grande sonho. Putin contra-atacou brilhantemente fincando garras na Crimeia. Ele, porém, não considera o jogo encerrado. É provável que aproveite a primeira ocasião para criar novos problemas na parte da Ucrânia de língua russa, usando todas as armas à disposição nessa nova Guerra Fria inaugurada pelo golpe de Sebastopol.
E não lhe falta a capacidade de perturbar, como mostra a questão do Irã ou da Síria. Poderíamos acrescentar o Polo Norte, assim que ele se livrar das suas geleiras, mas também as zonas frágeis do Oriente Médio e da África. Tudo será ocasião para Putin humilhar o Ocidente.
*Gilles Lapouge é correspondente em Paris.
TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA