O Estado de S.Paulo - 06/03/11
Ao passar por São Paulo para participar de eventos de ciência política, o professor americano Philipe Schmitter, autor de densa pesquisa sobre a democracia brasileira, com a qual embasou sua tese de doutoramento no final da década de 60, deixou no ar incitante provocação: não entende ele por que o Brasil ainda se vale do "fóssil corporativista". A expressão usada para se referir ao conceito - conotando coisa antiquada, ultrapassada, defasada no tempo - se refere, evidentemente, ao modelo adotado por Getúlio Vargas e inspirado em Mussolini, cujos elementos se apresentam organicamente vivos (e como) ainda hoje, bastando olhar para instituições amarradas à frondosa árvore estatal, como as centrais sindicais, ou a constelação de entidades que vivem de contribuições de interesse de categorias profissionais ou econômicas, agrupadas no chamado Sistema S, encabeçadas por Sesi e Senai, por parte da indústria, e por Sesc e Senac, por parte do comércio.
A dúvida suscitada pelo pesquisador aponta para uma relação de troca: o corporativismo brasileiro continua a dar as cartas por conta do interesse das partes que dele se valem e nele se escudam em mantê-lo vivo. Para usar a conhecida expressão popular, os escudeiros do corporativismo, sejam representações laborais ou empresariais, querem mamar nas tetas do Estado. E este usa o equipamento para manter certo controle sobre as partes.
Impacta o professor Schmitter o fato de o Brasil, em pleno século 21, ainda não se ter livrado de um fenômeno que faria sentido nos anos 30 ou, como ele admite, até nos anos 50, e que hoje foi eliminado em países de costumes parecidos, como o México, onde a democratização esfacelou o modelo corporativista. A surpresa se torna ainda maior quando se observam a variedade de grupos étnicos e religiosos e a diferenciação das economias sub-regionais, características brasileiras que, por si só, dariam margem ao desenvolvimento de sólidas estruturas pluralistas e, consequentemente, ao desmoronamento do corporativismo. A dificuldade, não de todo detectada por aquele cientista social, reside na formação do ethos nacional. Expliquemos.
Somos um povo acostumado a viver sob a tutela do Estado. Cada ator social - grupamento, núcleos organizados, setores - imbui-se de pertencimento, a noção de que tem direito a uma cota do patrimônio estatal. O patrimonialismo é, assim, o desenho de fundo do traço corporativista. A este valor se agrega o cartorialismo, pelo qual a parte que cabe a cada um deve ser oficializada, documentada, registrada em cartório. Resulta desse impulso a proliferação de leis e decretos. O foro legislativo entope-se com a enxurrada de normas que visam a atacar, defender, proteger e preservar posições. O corporativismo, como se pode aduzir, se ancora em restrições, concessões, janelinhas de oportunidades e balcões de benefícios. São tantas as injunções que o oxigênio da liberdade de escolha acaba sendo ministrado a conta-gotas.
Nesse ponto, convém apontar a imensa contradição que permeia o tecido institucional: quanto mais o País avança na avenida da modernização de processos e práticas da gestão pública - cujo foco é o compromisso com metas, resultados, eficiência e eficácia -, mais preso permanece à floresta legislativa. Dessa forma, os trens velozes da contemporaneidade correm atrás da carroça protecionista. Eis aí o gigantesco paradoxo de nossa democracia funcional. O pluralismo que se enxerga na gama de instituições sociais e políticas, nas organizações não governamentais, nos grupos de interesse, não ganha correspondência no campo do voluntarismo e nas frentes de livre escolha. Há, quase sempre, a mão imperiosa do Estado determinando preceitos e obrigações. Não é assim, por exemplo, no engessamento das relações de trabalho? Não é assim com o salário mínimo, decisão do Estado, quando deveria ser uma negociação entre o capital e o trabalho? Sindicatos, mesmo os que se manifestam contrariamente ao imposto compulsório, fazem dele seu eixo. As centrais sindicais se assemelham, cada vez mais, a corporações utilitaristas, que vivem intensa disputa para ampliar as bases e expandir receitas.
A miríade de associações, cada qual defendendo reivindicações de nichos e cadeias produtivas, se acostumou ao ofício de articular com os Poderes para baixar decretos, normas, instruções ou leis específicas de cunho protecionista. Mas tal composição não condiz com o formato de uma sociedade agrupada em núcleos especializados? É verdade. A especialização de grupos, incluindo os profissionais liberais, tende a crescer e a gerar efeitos, inclusive de natureza política, com a formação de cadeias e coalizões voltadas para eleger suas representações ao Parlamento. Impõe-se a pergunta: então, quem levantará a bandeira dos grupos sociais desorganizados, das massas periféricas, enfim, dos contingentes populacionais mais carentes? Os partidos? Ora, também começam a agir de maneira corporativa. Defendem, primeiro, suas fatias de poder. As 27 siglas que giram na constelação partidária acabam, elas próprias, sendo responsáveis pelo caráter fluido da política. Competitividade maior haveria se tivéssemos apenas cinco, seis ou sete partidos, que, ajustados ao arco ideológico, fariam representação mais adequada às divisões sociais. Sob essa configuração, o conceito de bem comum ganharia força.
Como se pode ver, os impedimentos para desmonte do corporativismo se repartem em muitos espaços. Um nó vai puxando o outro. O Estado gordo e intervencionista atrai ambições dos atores, que, por sua vez, lutam para ganhar terreno e administrar feudos corporativistas. Já o foro de legalidade é respaldado pela massa legislativa. Explica-se, assim, como o fóssil corporativista repousa na tumba repleta de interesses praticamente imune às moléstias do tempo. Protegido por uma guarda pretoriana, que, a ferro e fogo, afasta aqueles que ameaçam sua sobrevida.
Entrevista:O Estado inteligente
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