Entrevista:O Estado inteligente

domingo, fevereiro 07, 2010

Gaudêncio Torquato:A água no feijão

O ESTADO DE S PAULO

Receoso de receber resposta atravessada, o repórter perguntou a Getúlio Vargas, à saída do Palácio do Catete: "Presidente, o que é preciso para vencer uma eleição?" A resposta desconcertou o interlocutor: "Muita coisa. Boa memória, por exemplo. Política é como água no feijão. O que não presta flutua. O que é bom repousa no fundo." Nem bem a campanha presidencial deste ano chega às ruas e a água no feijão já começa a mostrar restos imprestáveis e sementes boas que efetivamente serão cozinhadas no fundo do caldeirão eleitoral. Para começar, entre o refugo que flutua há meias-verdades, versões fantasiosas e pequenos mitos sobre fatores que determinarão a vitória ou a derrota dos candidatos da situação e da oposição em outubro. Entre os elementos que calam fundo na mente e no coração dos eleitores, o feijão que alimenta estômagos é um deles. Principalmente quando cultivado na roça de uma economia saudável. Para quem tem boa memória, basta lembrar que Fernando Henrique foi guindado à Presidência, em 1994, pelo trator do Plano Real, que abriu o caminho da economia estável. Bill Clinton ganhou, em 1992, a presidência dos EUA porque ofereceu ao país soluções econômicas mais adequadas do que seu adversário, George Bush, o pai.

Se o feijão é um rebotalho, o cidadão rejeita. Quanto ao tipo, mais gordo ou mais magro, tem que ver com o bolso. A derrota de Eduardo Frei, candidato governista, no Chile teve que ver com o bolso mais apertado dos eleitores. É ele que garante o projeto de sobrevivência. O estômago dos chilenos começou a se esvaziar com a queda do PIB e a consequente expansão do desemprego, hoje em torno de 9%. A presidente Michelle Bachelet, com mais de 80% de aprovação, não conseguiu transferir prestígio e votos para seu candidato. E as ilações começam por aqui a agitar gregos e troianos. Lula elegerá Dilma? Eis a primeira questão: é possível comparar o Brasil com o Chile? Não. Geografias, programas econômicos e estruturas sociais diferentes não permitem inferir resultados eleitorais assemelhados. Esse exercício só tem valia para efeito de catarse de núcleos simpatizantes dos dois grupos em disputa. Mas nem por isso fatores na mesa de discussão - transferência de votos, economia estável, esgotamento do modelo - devem ser deixados de lado.

Transferir votos não é uma equação simples. É como transplante de um órgão humano. Deve haver compatibilidade entre doador e receptor. Se o receptor incorporar elementos (atitudes, gestos, expressões, estética) que causem ruído no sistema cognitivo do eleitor, perde força perante este. Lula é carismático, mas a força para incutir no eleitor a ideia de votar em sua candidata não é ilimitada. É evidente que os 28% alcançados por sua candidata na pesquisa Sensus têm que ver com sua influência. Mas a capacidade de transferir votos vai esbarrar, mais adiante, na comparação entre perfis. Valores como experiência, confiabilidade, preparo, seriedade, história pessoal e política são medidos pela régua do eleitor. Portanto, Serra e Dilma, lado a lado, serão avaliados. E Luiz Inácio, nesse momento, será pano de fundo. Sem conseguir, porém, convencer que Dilma é ele e vice-versa. Aspecto relevante é o desgaste de material, cansaço do modelo. Os chilenos mostraram-se desencantados com a política e seus atores. A apatia tomou conta do país após 20 anos de domínio do mesmo grupo. Governos longos entram em declínio mais cedo ou mais tarde.

Se não houver inovação, dois mandatos consecutivos são suficientes para exaurir um modelo. Após oito anos, o ciclo FHC começou a declinar. E a era Lula? Essa é a inflexão básica. O lulismo continuará? A resposta independe de garantia dada pela ministra-chefe da Casa Civil. De tão açambarcador, o perfil de Lula ameaça sombrear a identidade da pupila, deixando-a menor e esgarçando sua imagem. Não se pode negar que, apesar do conforto econômico, a maneira lulista de governar - autossuficiência, assistencialismo de viés demagógico, alta centralização, palanque eleitoral permanente, patrocínio de causas polêmicas e de um sindicalismo de proveta - começa a cansar. Núcleos de influência gostariam de dar férias a discursos trovejantes e refrãos surrados.

Por fim, chega-se ao feijão consistente do fundo da panela. A sociedade sente-se confortada? A resposta começa com o exame do bolso. O retrato agrada: o desemprego diminuiu, pobres entraram no mercado de consumo, classes médias ganharam incentivos para adquirir bens. A economia, portanto, passa a ser o portão principal para entrar no Palácio do Planalto. A eleição deste ano será a primeira, após o Plano Real, a combinar crescimento econômico (calculado entre 5% e 6%), inflação baixa e os menores juros da História. Portanto, sob o prisma do caldo grosso do feijão, Dilma, empurrada por Lula, pode levar a melhor. Mas a cozinha não será a única via de acesso ao voto. O sistema econômico, vale lembrar, não é um ente apartado do meio ambiente. A teia social é um conglomerado de sistemas e subsistemas, permeados por fatores como segurança/insegurança, serviços públicos eficientes/ineficientes, estruturas adequadas/inadequadas de saúde, etc. Os estômagos cheios fazem conexão com outras partes do corpo. E acionam outros compartimentos. Mente e corpo carecem de vida em harmonia. Nessa hora, a lupa do eleitor foca as mazelas sociais, fruto da inércia do Estado.

Conclusão: a relatividade é a certeza que se extrai da complexa engrenagem eleitoral. Para empanar ainda mais os horizontes é oportuno lembrar que o tempo faz a História. Cada mês, cada semana, cada dia tecem circunstâncias, medidas no momento em que ocorrem. Quando menos se espera, algo abrupto acontece no mundo da política. Os polos se invertem. A realidade, sob novos contornos, reescreve a crônica anunciada. No arremate, apenas um lembrete da História: o segundo turno é pior para candidatos oposicionistas.

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