A prisão apresenta uma estrutura diversa da existente na sociedade livre. No mundo do cárcere há regras próprias, códigos de honra que lhe são específicos, formas de assunção ao poder real caracteristicamente suas, instalando-se uma subcultura carcerária.
O condenado, ao entrar no cárcere, sofre o "choque da prisonização", com a perda da individualidade e da própria identidade, mesmo porque se afasta dos diversos papéis que representava na vida social. Será daí em diante membro de novo universo, muito distante daquele em que viveu. A prisonização significa uma dupla clivagem, paradoxalmente tecida por ruptura, exclusão, e construção de vínculo, inclusão: de um lado, a ruptura com a sociedade e, de outro, a inclusão forçada numa nova sociedade formada pelos excluídos do meio social, o grupo de diferentes, os estigmatizados como criminosos. O aprisionamento pode ser definido como uma "guilhotina seca", sem sangue, mas igualmente aniquiladora.
A vida na prisão é a vida do tempo perdido, como disse o professor Ricardo Antunes Andreucci. A maior tarefa está em se acostumar à falta de liberdade. O preso é o homem jurídico por excelência, que acorda à hora que a lei quer, come o que a lei quer, faz o que a lei manda, dorme à hora que a lei determina, com a inexorável consequência da supressão da capacidade de iniciativa e da responsabilidade pessoal.
Na prisão, o condenado idealiza a vida em liberdade, que colore de cores maravilhosas, olvidando-se, em face do sofrimento da clausura, da desarmonia e dos conflitos que caracterizam a vida em sociedade. No entanto, ao sair, vai enfrentar dobrados desafios. Será um novo choque, o "choque da liberdade", pois tudo estará diverso: as ruas, o transporte, a cidade, a sua própria família, os amigos - novidades estas a serem superadas com o peso de sofrer o estigma da condenação e a perda da força de iniciativa. Sai com o passaporte amarelo de Jean Valjean, o personagem de Os Miseráveis de Victor Hugo.
No guia do egresso, com dicas de sobrevivência em liberdade, editado pela Secretaria de Assuntos Penitenciários de São Paulo, em 2007, um ex-detento, na apresentação, aconselha: "Como exilados da realidade devemos construir nossos próprios caminhos. Na prisão existe a falsa ideia de que, saindo, todos os problemas estarão resolvidos. Ledo engano. Porque é aí que eles começam. Tudo é diferente do imaginado e o passado necessita ser totalmente reciclado."
Na Lei de Execução Penal, de 1984, de cuja elaboração participei, dá-se ênfase à assistência ao egresso, inclusive prevendo, no artigo 26, orientação e apoio para a reintegração à vida em liberdade, bem como a possibilidade de concessão de alojamento e alimentação pelo prazo de dois meses, renovável por igual tempo. Projeto de modificação da lei, do qual fui coordenador, timbra com vigor na necessidade de auxílio ao egresso prisional.
De 1985 em diante, algumas iniciativas foram adotadas. No Paraná, o governador José Richa emitiu decreto criando um programa de assistência ao egresso a ser desenvolvido pelo poder público em parceria com instituições de ensino, como se deu nos municípios de Maringá, Apucarana, Toledo, Irati e em outros dez mais. Em Juiz de Fora (MG), a assistência ao egresso é promovida pela ação do Núcleo de Prevenção da Criminalidade em conjunto com a universidade. Em Governador Valadares, a atuação se dá graças ao apoio da Federação das Indústrias de Minas Gerais. O auxílio aos egressos também é concedido em Joinville (SC) e em Macapá (AP), mas são essas exceções no conjunto do País.
Em São Paulo, no ano de 2003, foi criado o Departamento de Reintegração Social Penitenciário, com atuação em 17 municípios e com atendimento, em 2007, de mais de 50% dos egressos, fornecendo documentação e auxiliando na regularização da situação jurídica, além de atendimento psicológico. A experiência paulista revela queda significativa da reincidência dos assistidos.
Em 2009 houve importante iniciativa do Conselho Nacional de Justiça e do Supremo Tribunal Federal (STF), dando caráter nacional e peso à intensa campanha denominada Começar de Novo, procurando sensibilizar a sociedade e os poderes públicos estaduais e municipais em favor da oferta de emprego a ex-presos, que garanta ao egresso sustento e reencontro com a dignidade, condição essencial para evitar a reincidência, que hoje beira, no Brasil, a marca de 60%.
Em São Paulo, o governo estadual, com a participação de diversas secretarias, lançou, há um mês, na presença de Gilmar Mendes, presidente do STF, o Programa Pró-Egresso, pretendendo estender a todos os municípios uma eficiente assistência ao egresso, especialmente voltada para a obtenção de trabalho. Foi estipulado ser possível exigir que empresas vencedoras de licitação reservem 5% dos empregos na prestação do serviço a egressos, planejando-se criar, no ano que ora se inicia, 5 mil vagas para ex-detentos, sendo mil graças ao apoio do Sindicato de Empresas de Limpeza.
Se, porventura, tiver ocorrido um processo de reeducação no cárcere, pouco comum nas prisões brasileiras, tudo se põe a perder em uma semana de dificuldades na volta à liberdade, diante da constante discriminação a agir tal como uma pena perpétua de perda do reconhecimento do ex-detento da condição de exercer um trabalho, fonte de sustento e definidor do seu horizonte como pessoa.
Começar de novo é muito duro. Por isso, é relevante que nossa Suprema Corte se preocupe em promover o que a lei já determina e não se cumpre em grande parte do País: o auxílio ao egresso, que no presídio desaprendeu a andar por si só em liberdade e precisa de uma fisioterapia de alma, consistente no apoio que lhe deve ser concedido para viver livre e superar, sem recorrer ao delito, as agruras próprias da existência.
Entrevista:O Estado inteligente
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