O Brasil vive de surtos. Não apenas na área das doenças do passado - leishmaniose, hanseníase, dengue, tuberculose, cólera e febre amarela urbana. Os surtos nacionais se dão também na área das atitudes e dos comportamentos do governo federal. Vez ou outra, o País é surpreendido por uma decisão - instrução, projeto, decreto - que contraria a linha do bom senso. Quando se imagina que a velha luta de classes passou a dormir no baú das antiguidades, eis que ela ameaça tomar assento na arena dos conflitos cotidianos, por conta de figuras que ainda vivem nos tempos da guerra fria. Quando se pensa que o revanchismo foi banido da agenda política, surgem indícios de que continuam vivos os rancores do passado. Quando se desenha o espectro da Nação nos horizontes da estabilidade institucional, veem-se traços de improvisação, a denotar falta de rigor técnico, tendência à exorbitância e gosto pelo inusitado. Nada parece ser definitivo. A luz do direito à informação, que tem iluminado a democracia desde a Revolução Francesa, recebe, frequentemente, ameaças de apagão. A pergunta traz a dissonância: como um governo com formidável lastro nos ideais democráticos - distribuição de renda, defesa de minorias, liberdade de expressão e promoção da cidadania - pode abrigar redutos autoritários e centros de propulsão do radicalismo?
Só há uma resposta: o presidente Luiz Inácio, do alto de extraordinário poder, consente e até alimenta as divisões internas. Ou, como se diz de gente maquiavélica, divide para somar. Temos, assim, a radiografia de corpo inteiro do governo: o presidente exerce funções do mando executivo usando a força da caneta para fazer e desfazer, seduzindo e cooptando, puxando a orelha de comandados, dando o tom geral da administração, De um lado, deixa a coisa correr solta. Incentiva um subgoverno. Quando fatos, atos e atores entram em dissenso e litígio, Sua Excelência emerge como Poder Moderador. Chama as partes, ordena unidade de sentido, emergindo ao final como Lula, o Providencial, capaz de tornar possível o que parecia impossível. Sai de episódios negativos intacto. Para evitar que sombras de dúvidas sujem a imagem pinça o discurso pronto: assinou documentos sem ler, não sabia o que estava acontecendo, vai resolver o imbróglio.
Sob essa tessitura governativa se desenrola o pacote de dissonâncias do governo Lula. O Programa Nacional de Direitos Humanos é o mais recente exemplo. A vastidão temática, que abriga receituário considerado mais denso do que a própria Constituição, denota que o documento, à semelhança de outros, é para ser lido, e não cumprido. Lula, o Moderador, no último minuto aparece para conter a carga revanchista. É isso que causa estranheza. A conta dos anos de chumbo, que continua a ser paga (os programas de amparo às vítimas continuam se multiplicando até hoje), pela vontade de grupos encastelados na administração, deveria ser cobrada com muita punição. Convenhamos. Ninguém de bom senso pode ser contrário ao exercício da cidadania, entendido como o esforço contra qualquer tipo de arbítrio e que tem lastro no bem-estar. Mas tal esforço pela promoção humana deixa de ser efetivo quando se desgarra da realidade concreta, passando a acolher desejos exclusivos de setores que operam no seio do governo. A planilha dos direitos humanos, para ser respeitada, deve acolher o acordado pacto nacional por paz e justiça. Claro, em consonância com o ideário da sociedade civil.
Não se trata de perdoar torturadores ou querer apagar partes obscuras da História. A busca da verdade, porém, que inspira o programa de defesa dos direitos dos cidadãos, deve ser um exercício plural, buscando abrigar todas as partes envolvidas na luta armada. Outro surto do governo Lula é na área da mídia. O alvo é o direito de informação. Pela insistência com que a administração quer ordenar os rumos midiáticos, desconfia-se que há um núcleo que não se conforma com a livre expressão. Tenta-se, desde 2003, formar um Conselho de Comunicação com função de controlar os meios de comunicação. Se há um documento onde o monstrengo poderá aparecer, a patrulha age. A tentativa de mordaça tem dado com os burros n"água. O documento dos direitos humanos procura resgatar o controle quando propõe um ranking de mídias confiáveis.
Outra área que provoca surtos e sustos é a das relações trabalhistas. A política do trabalho é retrógrada. Para piorar, é conduzida pela mão forte das centrais sindicais. Exemplo é a visão do governo sobre a terceirização de serviços, que emerge, em todos os quadrantes, como mecanismo de apoio aos setores produtivos. Os serviços terceirizados se expandem ao fluxo da especialização e das estratégias de flexibilidade, rapidez e mobilidade. O universo do trabalho, no mundo, vive uma de suas mais agudas depressões, fruto da crise no sistema financeiro internacional. No Brasil, a terceirização é acusada de precarização do trabalho, mesmo sabendo que trabalhadores integram entidades laborais legalizadas e empresários formam sindicatos patronais especializados, em que se promovem convenções coletivas e se fixam os deveres fiscais/tributários de cada setor. As centrais combatem tal possibilidade porque temem a dispersão dos trabalhadores. Quanto mais bases fixas nas empresas, maior será a arrecadação sindical.
Há quem entenda os surtos autoritários como demonstração do extraordinário prestígio de Lula. A montanha do apoio popular permite-lhe subir aos píncaros da glória e brandir o slogan de Luís XIV: "Eu sou o Estado." Se o Estado é ele, pode comprar os caças Rafale, que custam o dobro do preço dos aviões suecos (os Gripen). Dinheiro não é problema. E Lula, como se sabe, é um grande gastador. Defensor do Estado forte. Cada vez mais forte ante o Estado em crise no liberalismo. Essa é a face autoritária do governo. E o diálogo com a sociedade? Faz parte da liturgia do poder. Mas a palavra final cabe ao todo-poderoso. Nunca na História deste país se leu tanto na mídia que "a decisão cabe ao presidente Lula".