Pensa que, se ela resolvesse mudar de cidade, como sua vida ficaria difícil -ah, não gosta nem de pensar |
VOCÊ não sabe o quanto é perigoso quando alguém resolve virar sua escrava. Se você se distrair e deixar, vai se arrepender um dia, e amargamente. Essas pessoas são fiéis, devotadas e estão sempre à disposição. No início são maravilhosas, e se você se deixar levar, quando abrir os olhos, adeus independência, privacidade, vida própria.
Começa devagar: naquele domingo que você está resfriada, ela chega com os jornais, pão fresquinho, vitamina C e aspirina -tem melhor? Você fala em trocar o forro do sofá, e ela conhece um estofador bem baratinho e bem rápido; ah, quer vender a poltrona? Ela tem o telefone de um homem que compra móveis usados. Quem não quer uma amiga dessas? Ela começa a fazer tudo e você vai deixando; porque é fácil, porque é cômodo, porque todo mundo quer mesmo é moleza. Ela se aproveita e começa a ocupar vários espaços em sua vida.
Um dia chega de Petrópolis com dois cachos de banana-ouro que comprou na estrada. Da outra vez é um isopor cheio de camarão fresquinho, que não é de cativeiro, trazido de Cabo Frio; com este presentão, começa a se sentir com total liberdade de chegar e ir tocando a campainha sem ter nem avisado que vinha; afinal, podia estragar, com o calor. Quando você se espanta com tanta coisa na geladeira -afinal, mora sozinha-, vem a sugestão: uma moqueca no almoço de domingo -que ela mesma vai fazer, é claro. Também vai trazer a sobremesa, e uns amigos -e por acaso você pode dizer que não?
Ela não dá trégua: quando você cai em depressão, indica um analista; quando a cara pendura, um cirurgião plástico; quando a televisão quebra, um técnico que chega na hora marcada -e por aí vai. Se você se distrair, ela fez você trocar de supermercado, mudar o tipo de alimentação, de religião e de partido político. Ah, e induz você a marcar hora com o médico da moda, que faz medicina ortomolecular. Ela vai ouvir seus problemas, dar palpites, conselhos, e estará sempre à sua disposição, dia e noite, para o que quer que seja. Quando sua empregada some, te arranja outra de total confiança; te ajuda nas coisas mais insuportáveis, tipo entrar na fila do correio para mandar uma encomenda pelo Sedex (faz o embrulho e tudo), leva seu cachorro ao veterinário e descola um atestado médico -quem não precisa de um, às vezes?
Um dia você pensa: como tem sorte de ter uma amiga assim. Lembra do tempo em que morava fora do Brasil e se quebrasse a perna não tinha nem para quem telefonar, pedindo ajuda. Que felicidade ter alguém sempre por perto, sempre disponível, com quem pode contar para tudo, absolutamente tudo; até ir a uma delegacia para ser testemunha de uma batida de carro ela já foi, existe prova maior de amizade? Pensa que, se ela resolvesse mudar de cidade ou de país, como sua vida ficaria difícil -ah, não gosta nem de pensar.
Como ninguém controla os pensamentos, viaja, e chega até a pensar que abusa; afinal, mais que uma amiga, ela é praticamente uma escrava. Mal sabe que é exatamente o contrário. Quem virou a escrava, na verdade, foi você -tudo, aliás, que a outra pretendia. Ah, Freud.