FOLHA DE S. PAULO
As cidades, berço da civilização, tornaram-se no Brasil o cenário da tragédia das periferias
A PASSIVIDADE com que nos resignamos a tragédias anunciadas e evitáveis tem a mesma regularidade e previsibilidade das chuvas de verão. Uma de minhas mais antigas lembranças é da nossa casa do Brás arruinada pelo Tamanduateí nas enchentes que já devastavam a zona 70 anos atrás.
As cidades, berço da civilização (a palavra vem de "civitas", cidade), tornaram-se no Brasil o cenário da tragédia das periferias. Nossa urbanização (acima de 80%) supera a de vários países europeus. Temos 115 cidades de mais de 100 mil habitantes e 18 acima de 1 milhão.
No entanto, o tema urbano está ausente do repetitivo debate sobre o país.
Nas três últimas décadas do século passado, 90 milhões de novos citadinos explodiram o sistema urbano brasileiro. Essa expansão não foi antecipada pelos governos com medidas que se adiantassem aos problemas. George Martine, um dos melhores estudiosos do fenômeno, observa que jamais houve prioridade para a oferta pública de terrenos e moradias aos mais pobres.
Abandonados e sem alternativa, esses são obrigados a morar nas áreas de risco: no município de São Paulo, quase 30% dos 2,8 milhões de baixa renda vivem em várzeas inundáveis ou encostas ameaçadas de deslizamentos, ante apenas 9% dos de alta renda.
Metade das favelas paulistas se situa em várzeas sujeitas a inundações crônicas. O problema tende a se agravar porque, enquanto os bairros ricos apresentam crescimento negativo, as únicas regiões que crescem nas metrópoles são as pobres (3,6%) e, dentro delas, as de risco (4,8%).
Comenta Martine que, apesar de sua constante expansão, as invasões e as ocupações ilegais têm sido tratadas como situações transitórias que se espera venham milagrosamente a desaparecer graças ao desenvolvimento. A ninguém ocorre que "é muito mais barato e efetivo preparar-se para o crescimento inevitável do que tentar corrigir o fato consumado". Cita exemplo de estudo sobre Curitiba, onde a remoção de 11 mil casas irregulares, menos de 3% do total, custaria o dobro da renda do imposto imobiliário do município.
Ao contrário do que se crê, os pobres não moram de graça. Em termos relativos, pagam mais pelos terrenos do que os abastados. Longe de serem espontâneas, as ocupações e os loteamentos clandestinos são objeto de lucrativa atividade de loteadores piratas.
A solução passa por duas medidas: 1ª) regulamentar e fiscalizar o mercado de terrenos das periferias a fim de proteger os pobres da espoliação; 2ª) mediante recursos de taxas sobre a valorização de imóveis, adquirir e dotar de infraestrutura glebas para vivendas populares ao longo de eixos de transporte rápido, como se fez no passado em Curitiba.
Não só faltam propostas de solução mas existe pouca consciência do problema. Nas eleições, nem se discutem os Planos Diretores das cidades e, de cada dez desses planos elaborados nos anos 70, sete foram engavetados. As tragédias que se repetem em São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina, um pouco por toda a parte, deveriam nos obrigar a cobrar neste ano dos candidatos a presidente e governador ideias claras sobre como tencionam enfrentar os problemas oriundos de uma urbanização selvagem e distorcida. Mais que a herança do passado rural, o desafio e a promessa do Brasil futuro se encontram nas cidades.
Entrevista:O Estado inteligente
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