O GLOBO
Desde que assumiu em 2004, a pedido dos Estados Unidos, o comando da Força de Paz da ONU no Haiti, o governo brasileiro vem fazendo gestões junto aos organismos internacionais, inclusive a própria ONU, para que se empenhem com mais vigor na recuperação do país mais pobre do ocidente, com programas de ajuda humanitária, mais apoio de forças de outros países, máquinas para limpar as ruas, dinheiro para programas sociais
O impacto da tragédia em Porto Príncipe está fazendo, afinal, com que a situação do Haiti ganhe relevância no discurso de líderes internacionais como os presidentes dos Estados Unidos, Barack Obama, e da França, Nicolas Sarkozy.
É preciso agora que promessas antigas da comunidade internacional, como apoio financeiro do BID e da Comunidade Europeia, se tornem realidade, juntamente com o apoio indispensável, financeiro e político dos Estados Unidos.
O governo brasileiro jamais admitiu formalmente, mas viu desde cedo, no pedido dos Estados Unidos, uma boa oportunidade para reforçar sua pretensão de obter uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU.
As experiências anteriores, lideradas por militares dos Estados Unidos e da França, fracassaram redondamente sobretudo porque se limitaram à repressão militar violenta, criando um clima permanente de confrontação que era estimulado pelas gangues que dominavam a maior parte do território, especialmente em Porto Príncipe.
Esse foi o ambiente inicial que as tropas brasileiras encontraram em Porto Príncipe, e houve mesmo uma tentativa de grupos parlamentares de não aprovar a renovação da autorização para as tropas ficarem por lá, devido às notícias de que a rejeição da população era grande.
A estratégia de passar a prestar serviços básicos à população, depois de dominar as partes de Porto Príncipe que estavam controladas por gangues, foi fundamental para o êxito da força internacional de paz que o Brasil comanda no Haiti.
Uma das primeiras decisões para libertar a Cité Soleil, uma das maiores favelas do país, dominada por gangues armadas, foi participar da retirada do lixo que se acumulava nas ruas e era usado até mesmo como barricadas.
O clima de simpatia em relação aos militares brasileiros passou a predominar, consolidado pelo Jogo da Paz, em que a seleção brasileira jogou no Haiti. Até bem pouco, era comum ver bandeiras brasileiras pintadas nos muros da cidade, e crianças com camisas da seleção.
A necessidade de maior financiamento está explícita justamente nessa estratégia de dominação do território, onde o combate às gangues tem que ser seguido de uma atuação social imediata, levando escolas, postos de saúde, delegacias de polícia à população.
Da mesma forma que acontece nas favelas cariocas que eram dominadas pelos traficantes, se não houver depois a ocupação "do bem", com o cumprimento efetivo do que se espera do Estado, a situação voltará ao que era.
A experiência que o Exército brasileiro está tendo no Haiti é considerada algo que tem sido efetivamente inovador no campo militar, por não se limitar à tarefa de polícia e dar aos militares treinamento em uma nova forma de atuação que pode ser útil em outras operações que envolvam a ocupação de territórios dominados por bandidos.
O Ministério da Defesa, por isso mesmo, está promovendo uma reforma na legislação, que depende da aprovação do Congresso, para dar poder de polícia às Forças Armadas que atuem em conflitos urbanos e também no patrulhamento das fronteiras.
A atuação junto às comunidades carentes em casos como o do Haiti é também uma aplicação da experiência que o Exército brasileiro já adquiriu na atuação em território nacional, como na Amazônia, por meio de ações cívico-sociais (as operações Acisos).
A importância estratégica que o Brasil ganhou com a atuação no Haiti coloca o país no centro das decisões sobre sua reconstrução, e o governo brasileiro pretende assumir a tarefa dentro do contexto de liderança regional: o que acontece nas Américas tem que ser do nosso interesse, é a definição do Itamaraty.
A mudança que o presidente Lula fez no texto, que ele não havia lido, do Programa Nacional de Direitos Humanos, no que se refere à criação da Comissão Nacional da Verdade, esvaziou a crise militar por uma simples razão: o recuo retirou do texto a carga de revanchismo que poderia justificar uma investigação tendenciosa. E deixou claro que na Lei de Anistia não se mexe.
Mas a abrangência de tempo — de 1946 a 1988 — já estava lá no texto original.
A Comissão da Verdade, em que pese o nome mal definido, pois chegar à verdade completa é impossível, por ela ser, por definição, inexaurível, poderá, mesmo com sua função podada de ideologia, "identificar e tornar públicas" as violações dos direitos humanos.
Não há nada que impeça que o governo, através dela, abra os arquivos dos tempos do regime militar.
Anistia é perdão, mas não é esquecimento.
Tem cabido à imprensa nos últimos anos a revelação de fatos obscuros do tempo ditatorial. Cito aqui duas grandes reportagens do GLOBO, entre tantas, como exemplo desse trabalho: Em 1995, a partir de documentos obtidos junto a fontes militares, um profundo trabalho investigativo reconstituiu a história da Guerrilha do Araguaia, proporcionando a descoberta de ossadas em cemitérios clandestinos, a identificação de uma guerrilheira dada como "desaparecida" e pagamento de indenizações às famílias.
Em 1999, uma série de reportagens do GLOBO provocou a reabertura do caso do Riocentro, provando oficialmente o que todos sabiam: que os militares foram os responsáveis pela explosão da bomba. Ninguém foi preso pois o crime havia prescrito, mas a história foi revelada