O Estado de S. Paulo, 15/01/10
“É um grande prazer recebê-los aqui, senhor Bispo, dra. Zilda. Já li a pauta que sugeriram para este encontro e que inclui várias questões pendentes entre o ministério e a Pastoral da Criança. Mas, antes de ouvi-los, eu queria perguntar: a senhora estaria disposta, seria possível duplicar o trabalho que a Pastoral vem fazendo com o apoio do Ministério da Saúde? Nós duplicaríamos imediatamente os recursos, bastaria apresentarem um plano de expansão. Acho a ação da Pastoral extraordinária e fundamental para derrubarmos ainda mais a mortalidade infantil no Brasil.”
Foi mais ou menos isso o que eu disse aos dois visitantes, numa tarde de abril de 1998, enquanto eles ainda se acomodavam nas poltronas da minha sala, no Ministério da Saúde. Não disfarçaram sua surpresa, esqueceram seus pleitos e aceitaram o desafio na hora. Eu havia assumido o cargo fazia poucos dias e tinha atendido rapidamente a um pedido de audiência do bispo d. Aloysio Penna, responsável pela área da criança na CNBB, e da dra. Zilda Arns, coordenadora da Pastoral da Criança.
Dali em diante, Zilda Arns tornou-se uma parceira de todos os momentos. Recorri a ela muitas vezes, como no caso do Projeto de Emenda Constitucional nº 30, em 2000/01, que definia recursos orçamentários mínimos para a Saúde, nas três esferas de governo. A tramitação no Congresso era difícil, principalmente no Senado. Por isso, pedi ajuda a ela e a seu irmão, d. Paulo Evaristo. E eles acabaram sendo fundamentais na mobilização da opinião pública em favor da aprovação da emenda.
Zilda Arns tinha formação científica e era cristã fervorosa. Com sua crença, tornou mais humana a sua ciência; com a sua ciência, deu impressionante dimensão prática à sua crença. Sempre evidenciou a importância de unir o Brasil num propósito, em vez de dividi-lo. De potencializar o conhecimento com a fé, e a fé com o conhecimento.
Ela era infinitamente paciente. Uma mulher serena nos gestos, no olhar, no sorriso fácil, na delicadeza com que tratava todos, em qualquer circunstância, e na tolerância em relação às ideias das quais divergia e às pessoas que não admirava. Ao mesmo tempo, era disciplinada, organizada e sistemática no trabalho, docemente insistente na defesa de suas crenças e propostas.
Certa vez, quando intensificamos, no Ministério da Saúde, a distribuição de anticoncepcionais e preservativos, a dra. Zilda veio me ver. Sem fazer menção à nossa campanha, mostrou-me uma espécie de terço que, à primeira vista, não identifiquei. Não percebi do que se tratava. Finalmente, depois de alguns rodeios, ela me explicou: era um expediente de custo mínimo, para as mulheres lembrarem seus dias de fertilidade e controlarem suas relações sexuais, evitando gravidez indesejada. Surpreso, tentei argumentar:
- Mas, dona Zilda, o pessoal aqui do ministério não vai aceitar nunca que esse terço seja utilizado em vez de anticoncepcionais.
- Eu sei disso. Mas nada impede que este método seja utilizado como complemento, inclusive com mulheres que não podem tomar anticoncepcionais. Aí as pessoas que são contra vão se convencer, pois os resultados serão muito bons.
Essa era a Zilda Arns. Não brigava, procurava persuadir. A mesma dona Zilda que salvou a vida de centenas de milhares de crianças. Tradicionalmente, o combate à mortalidade infantil no Brasil, do ângulo correto do governo, requer três linhas de ação: expansão das obras de saneamento básico, atenção às gestantes e melhora do atendimento no parto, incluindo a fase pré-natal. No ministério, ratificamos essas linhas, reforçando muito cada um dos seus elos e estendendo-as ao pós-natal, mediante uma expansão considerável das UTIs especializadas por todo o País.
O trabalho da Pastoral da Criança, contudo, era e é de outra natureza, complementar, educativa e psicológica, enfatizando a atenção à família, as condições de higiene e nutrição, acompanhando o desenvolvimento das crianças, em cada casa, em cada bairro. É um trabalho feito por voluntários (hoje, mais de 150 mil) e focalizado nas regiões e municípios mais pobres (cerca de 3,4 mil). Até certo ponto, acaba sendo, também, uma “porta de entrada” dos mais carentes nas redes públicas de Saúde.
Dona Zilda fazia muito mais com muito menos. Perdoem-me o economicismo: a “produtividade” dessas ações era enorme, em termos de queda da mortalidade infantil. Certa vez, estimei que, para obter os resultados do trabalho comandado por ela, uma ação equivalente de governo custaria de oito a dez vezes mais.
O governo já havia percebido a necessidade de atuar junto às famílias. Traduziu-a nos programas de Saúde da Família e de agentes comunitários de Saúde, criados na primeira metade dos anos noventa, mas ainda incipientes, no caso do PSF. Por isso mesmo, multiplicamos por dez, em poucos anos, o número de equipes, de forma mais concentrada nas áreas mais carentes do País. Porém, as ações da Pastoral, integrais, envolventes e próximas das pessoas, mais do que necessárias, continuaram insubstituíveis.
Em 2001, por ideia de um amigo que a admirava, deflagrei uma campanha para a concessão do Prêmio Nobel da Paz à dra. Zilda Arns. Naquele momento, ficou claro o reconhecimento que seu trabalho e seu exemplo mereciam, não só no Brasil como em todo o mundo, pela extensão e representatividade dos apoios que sua indicação recebeu.
Aliás, ela sempre deu prioridade à transmissão e à réplica da experiência brasileira da Pastoral da Criança nos países pobres da América Latina, da Ásia e da África. Foi nessa missão que ela estava no Haiti, o país mais pobre das Américas. E foi dali, dentro de uma Igreja onde pregava, que nos deixou, sob os escombros da tragédia que matou também jovens militares brasileiros, num incrível capricho do destino.
Morreu Dona Zilda. Viva Dona Zilda, na sua obra, no seu exemplo e nos milhares e milhares de crianças cujas vidas ajudou a salvar e a construir.