Uma nação em jogo
Em Invictus, Clint Eastwood conta como Nelson Mandela usou o rúgbi,
símbolo do apartheid, para unir um país prestes a se esfacelar
Isabela Boscov
Divulgação |
APARÊNCIA QUE ENGANA Crianças negras e pobres, brancos ricos e fortes: a cena evoca a segregação – mas as forças já se inverteram |
Bem no início de Invictus (Estados Unidos, 2009), que estreia no país na próxima sexta-feira, uma sequência opõe duas cenas cotidianas na África do Sul. De um lado de uma cerca, uma equipe de rúgbi treina com técnico, uniformes e campo apropriado – uma equipe de colégio, nem rica nem profissional. Ainda assim, ela poderia estar em outro planeta que não o dos meninos negros que, do outro lado da cerca, jogam futebol de chinelos, na poeira. Clichês sobre desigualdade e injustiça imediatamente vêm à mente. E desfazem-se com igual rapidez quando o diretor Clint Eastwood abre o foco e situa essas cenas contrastantes. Conquanto nada pareça ter mudado – brancos têm meios e preparo, negros improvisam como podem –, essa não mais é a África do Sul do apartheid. É a de 1995, em que o líder negro Nelson Mandela está já há um ano na Presidência. Agora os brancos é que se sentem acuados pela súbita força da população negra. O entrincheiramento e a disparidade prosseguem com a inevitabilidade ditada pelas décadas anteriores; mas a correlação de forças é totalmente nova.
O rúgbi não é uma imagem escolhida ao acaso. Em 1995, sentindo a África do Sul à beira do esfacelamento, Mandela se lançou em uma empreitada quimérica: transformar os Springboks, a seleção nacional de rúgbi e emblema do orgulho branco, detestada pelos negros, em foco de união nacional. A equipe vinha perdendo de lavada de seus adversários; Mandela, enxergando ali sua oportunidade, insuflou o capitão do time, François Pienaar, a buscar a vitória na Copa do Mundo daquele ano. Ou seja, fez em direção ao inimigo um gesto de acolhida no novo estado e de respeito aos seus ícones. E, com seu apoio insistente à equipe, deixou claro para os sul-africanos negros que não toleraria um projeto de supremacia negra: o único projeto que endossaria seria o de uma nação.
Pode cheirar a exaltação. Mas Eastwood, sempre atento à linha sutil que separa simplicidade de simplismo, evoca algo bem diverso. Como em Menina de Ouro e Gran Torino, fala de medidas desesperadas em situações extremas, e maravilha-se com a capacidade humana de, ainda que momentaneamente, renunciar à ignorância. Da exposição inicial meio lenta, mas necessária, à eletricidade com que filma os choques físicos do rúgbi, Eastwood enreda o espectador para garantir que ele atente ao que de fato importa – os personagens. No papel de Mandela, Morgan Freeman é magnífico. Reproduz suas feições mais conhecidas, como o arrastar dos pés e o sorriso de estadista, mas acima de tudo identifica nele uma atitude interior intangível: a solidão extrema da liderança e também uma euforia secreta de exercer o poder. É provável, embora não justo, que termine por eclipsar o trabalho de Matt Damon como François Pienaar. Um ator cada vez mais apurado na técnica e inteligente na leitura de seus personagens, Damon tira de Pienaar a iluminação que é o centro do filme – a de que não fazer o que é errado nem sempre basta. Decidir-se pelo certo é, quase sempre, indispensável.
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