da Veja
"Contempla-se o mapa e surge por inteiro o erro que
é a América Central – um rabicho da América do Norte,
ou um penacho brotado da cabeça da América do Sul"
Fala-se de Honduras, nestes dias, Honduras para cá, Honduras para lá, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Não é. Não dá para comentar um golpe, ou uma situação política, por mais grotesca ou absurda, sem atentar primeiro ao absurdo que é Honduras em si, mesmo sem golpes ou situação política explosiva. Este é o ponto. Quem discute o golpe dá por pacífica a existência de Honduras. Considera que um país chamado Honduras é algo perfeitamente normal e cabível na ordem geral do planeta. Ora, essas pessoas deveriam parar um momento para pensar. Como assim? Honduras? Um país chamado Honduras? A conclusão inevitável é que Honduras é uma aberração.
A América Central é uma aberração. É produto de um erro geológico, um esquecimento que fez uma tripa de terra resistir a seu destino lógico, que seria a submersão no oceano. Sem ela, os oceanos Atlântico e Pacífico teriam ampla comunicação. Teria sido evitado o drama que foi a construção do Canal do Panamá, incluindo o escândalo financeiro da primeira tentativa de sua abertura, tão rumoroso que a palavra "panamá" virou sinônimo de negociata. A América do Norte e a América do Sul seriam dois continentes diferentes, com identidades ainda mais nítidas do que as que já possuem. Teriam nomes diferentes, em consequência. E inexistiria o problema de os do Sul se sentirem órfãos do adjetivo "americano", de tal forma ele é identificado com o mais poderoso dos países do Norte.
Contempla-se o mapa e surge por inteiro o erro que é a América Central – um rabicho da América do Norte, ou, vista do ângulo oposto, um penacho, ou um topete rebelde, brotado da cabeça da América do Sul. Bem… Já que existe, poderia contentar-se em constituir-se numa ponte, uma passagem seca, e por isso uma boa alternativa de comunicação, entre a América do Norte e a do Sul. Não; foi-se além, e implantou-se ali… um país? Um único país, o que, vá lá, com boa vontade seria tolerável? Não; implantaram-se sete países. Sete! Existe até um chamado Belize. Eles acomodam-se mal, apertados uns contra os outros como num trem de subúrbio às 6 da tarde, e não é de espantar que, quando não estão em conflito consigo mesmos, como ocorreu nas guerras civis de El Salvador e Nicarágua, enfrentam-se uns aos outros, como na Guerra do Futebol, entre o mesmo El Salvador e nossa espantosa Honduras, iniciada no estádio em que se enfrentavam, em 1969, as seleções dos dois países.
O.k., reconheçamos que, caso não houvesse a América Central, não haveria conflitos que até possuem seu lado recreativo, infelizmente ensombrecido pela triste circunstância de também levarem à morte e à devastação, como a Guerra do Futebol. E caso não houvesse Honduras não haveria um espetáculo retrô, para encher de conforto a alma de um saudosista, como a deposição manu militari de um presidente, ainda mais que enriquecida por particularidades como arrancar o presidente do palácio de pijama, levá-lo ao aeroporto e despejá-lo, sempre de pijama, num país vizinho.
Tais aspectos não compensam o absurdo que é a mera existência da América Central. O simples fato de haver nações, com o consequente aparato de fronteiras, exércitos, nacionalismos e xenofobias, já é questionado pelos mais idealistas. Transportado para a América Central, o argumento multiplica-se por mil. Se fosse habitada por árabes e judeus, uns roçando as costas dos outros, ou indianos e paquistaneses, ou chineses han e chineses uigures, ainda se entenderia caber tanto conflito em tão exíguo cenário. Não; são países que falam todos a mesma língua, exceto Belize, são todos cristãos e possuem composições étnicas iguais, ou quase. A América Central é uma amostra eloquente da forma, abusiva e abusada, como as nações brotaram e continuam brotando na face do planeta Terra.
Enquanto isso…
Neste outro país aberrante, por outros motivos, que é o Brasil, os deputados dão um golpe na internet. O projeto de lei eleitoral aprovado na semana passada pela Câmara amarra as campanhas políticas pelo novo meio de comunicação na mesma camisa de força da televisão. Dificultam-se ou proíbem-se os debates, as entrevistas, as críticas, a controvérsia. A internet é mais arisca, como se sabe, e a possibilidade de a lei não pegar, pela impossibilidade de fiscalização, é grande. Em todo caso, está lá, no papel, esperando agora a aprovação do Senado. A inspiração central do projeto é reforçar o já velho e vitorioso objetivo de fazer o eleitor votar às cegas.