A verdade às vezes dói, mas tem de ser reconhecida. E a verdade é que minha missão em Itaparica resultou em fracasso quase absoluto. A última gota foi o cachorro de uma casa vizinha, que deve ser de uma raça especializada em latir cuja convivência, com certeza, Satanás já incluiu entre os padecimentos avernais. Meu amigo Xepa sustenta que ele é parente de Tainha, o cachorro torcedor do Bahia que mencionei aqui na semana passada. Por eu ser Vitória, a família estaria me sabotando. Hesitei em acreditar na explicação e perguntei a Xepa se por acaso o cachorro tinha lhe falado alguma coisa.
— Você está querendo curtir com a minha cara — disse Xepa —, pra me pegar dizendo que cachorro fala e me botar de mentiroso no jornal. É claro que ele não fala nada, ele só rosna e dá uma corridinha para o poste, quando alguém toca no seu nome, eu já disse que ele é um cachorro normal.
Bem, sabotagem de torcida organizada ou não, enfiei a viola no saco e voltei aqui para minha toca habitual. Cheguei no começo da semana e creio que já passei pela descompressão. Tenho experiência e sei, por exemplo, que assistir a um noticiário de televisão inteiro, logo de primeira, pode ser muito traumatizante.
Fui devagar, no começo emudecendo a tevê durante a narração de mortes de crianças e vítimas de balas perdidas e me concentrando mais na área de entretenimento para adultos, como, por exemplo, a TV Senado.
Mas, já ousando sintonizar outros canais, que vejo aqui, nisso que, a princípio, imagino que seja mais uma reportagem sobre como a final do campeonato mundial de xadrez foi realizada enquanto os contendores estavam num engarrafamento de rotina em São Paulo? Não, não é. É uma matéria sobre os rigores da lei se abatendo sobre um motorista de táxi paulistano porque ele foi flagrado usando touca em serviço.
Não é no sentido figurado que porventura a expressão tenha, mas no literal mesmo. Estava fazendo frio e o motorista, que, se bem me lembro, é meio careca, cobriu a cabeça com uma touca de lã. Vai pagar multa severa, por violar as implacáveis exigências de vestuário para motoristas de táxi paulistanos. Assaltar motoristas nos semáforos não dá em nada, mas usar touca dá multa, deve estar certo, não sei o que seria de nós sem os agentes responsáveis pela rigorosa aplicação da lei.
Aparece também uma senhora condenada a entregar seu papagaio de estimação ao Ibama, bem como a cumprir pena de serviços comunitários — em seu caso creio que varrendo as ruas do bairro. Claro, papagaio é animal doméstico até de índios e deve haver milhares, talvez dezenas de milhares, de papagaios de estimação em todo o Brasil, mas, certamente por denúncia de algum invejoso, esse foi pegado e a infratora duramente castigada. Não se pode passar a mão pela cabeça desses foras da lei. A proteção dos animais silvestres no Brasil é muito rigorosa, tão rigorosa que, como se sabe, se sai menos mal quem matar um fiscal do Ibama do que quem deixar que este o pilhe violando uma lei ambiental. O crime ambiental é inafiançável e as penas são severas.
Matar gente, ao contrário. Fogese do flagrante, arruma-se um bom advogado, responde-se ao processo em liberdade e pega-se uma cadeiazinha branda, em regime semiaberto ou de acordo com qualquer das liberalidades previstas em lei.
É o que fica patente diante de nova reportagem, desta feita sobre um dos muitos casos de motoristas bêbedos que atropelaram e mataram uma ou mais pessoas. A conclusão é óbvia. O Brasil proporciona a seus cidadãos, de forma certamente pioneira, até mesmo entre os países em desenvolvimento, uma maneira tranquila e eficaz de eliminar desafetos. Quem quiser matar alguém sem sofrer consequências desagradáveis só precisa dispor, como na matéria que vejo aqui na televisão, de um carro e de mil e duzentos reais para pagar a fiança. Vamos convir que sai barato e quem se queixa está chorando de barriga cheia. O carro e os mil e duzentos dão direito até a várias mortes e mutilações simultâneas, no que se costuma chamar de chacina, quando praticado com outras armas.
Não é preciso nem passar pelo teste do bafômetro. Aliás, beber antes do homicídio motorizado está na lei como agravante, mas na prática é atenuante.
Já vi autoridades policiais dando entrevistas em que diziam como o motorista, depois de passado o pileque, ficara coberto de remorso e arrependimento.
Remorso e arrependimento, aliás, que não mais parecem necessários, nem para compor a situação.
O homicida simplesmente recita o que seu advogado formulou e daí sai para o merecido descanso, porque matar alguém, mesmo de um jeito legitimado pela sociedade, será talvez um pouco estressante e não vejo ninguém preocupado com o estado de espírito que deve acometer os culpados, os coitados que se virem sozinhos.
E há também notícias sobre ladrões de dinheiro público, quadrilhas, corrupção, não sei mais o quê. Deve ser a idade, mas já não distingo mais as coisas e apenas antevejo que chegará o dia em que nós brasileiros, nas primeiras conversas com novos conhecidos, informaremos não somente o nome e a profissão, mas também a quadrilha a que pertencemos. Ninguém se espanta mais com as onipresentes histórias de políticos que nasceram pobres ou remediados e hoje têm grandes fortunas. Meter a mão no dinheiro público se confirma a cada dia como irreversível e incoercível vocação nacional, até porque só é delito quando aparece nos noticiários e os apresentadores são obrigados a fingir que realmente se aplicam sentenças de dezenas de anos de reclusão, com a devolução do dinheiro tungado.
Passo um instantinho meio chateado, mas logo me tranquilizo. Depois de uma eficiente operação policial, Romário vai passar a noite na cadeia, já podemos dormir tranquilos.
Entrevista:O Estado inteligente
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JOÃO UBALDO RIBEIRO Dos delitos e das penas
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