Entrevista:O Estado inteligente

sábado, março 28, 2009

Especial A dona da Daslu é condenada a 94 anos de prisão

Um dia a casa cai. Cai?

Nunca se viu coisa assim: Eliana Tranchesi, dona
da loja de alto luxo Daslu, é condenada a quase
um século de prisão por fazer importações ilegais


Laura Diniz, Bel Moherdaui e Sandra Brasil

Fotos Alexandre Vieira/Futura Press e Fernando Donasci/Folha Imagem
PRESA, NOVAMENTE
Depois de permanecer dez horas presa, em 2005, Eliana voltou a ficar atrás das grades na semana passada. No bilhete à imprensa, acima, ela escreveu: "Não represento perigo para a sociedade". Na sexta-feira, recebeu um habeas corpus

É comum, no Brasil, reclamar das penas aplicadas pela Justiça: muito baixas para crimes hediondos, muito duras para ladrões de galinha, quase nulas para colarinhos-brancos. Nesse contexto, o anúncio da sentença de 94 anos e seis meses de prisão a Eliana Tranchesi e seu irmão Antônio Carlos Piva de Albuquerque foi recebido tanto com indignação, em certos círculos, quanto com satisfação, em outros. Eliana e Antônio Carlos são sócios da Daslu, a loja paulistana que se tornou símbolo do alto luxo no Brasil, e a condenação refere-se ao esquema montado pela empresa para burlar o Fisco na importação de produtos de marcas caras. Os indignados consideram a sentença exagerada em um país em que um assassino qualificado pode ficar apenas cinco anos preso em regime fechado, se for réu primário. Os satisfeitos lembram que criminosos ricos e poderosos raramente são punidos e, portanto, é preciso dar o exemplo. Ao comentar a sentença, o procurador da República Matheus Baraldi Magnani, autor da denúncia, comemorou o fato de que, finalmente, a Justiça estava atingindo o que ele chamou de fidalgos. "É preciso tomar cuidado com esses dois extremos", diz o jurista Luiz Flávio Gomes, de São Paulo. "Não é porque a Justiça é injusta para alguns que deve ser assim para todos." Na tarde de sexta-feira, um habeas corpus permitiu que Eliana fosse para casa, mas não afastou a possibilidade de sua volta à prisão.

Assim como ser pobre não é qualidade, ser rico não é um crime, ao contrário do que esperneiam os demagogos de credo esquerdista. A riqueza, no mundo capitalista moderno, é fruto de trabalho, ousadia e criatividade – e, como tal, produz emprego, consumo e outras oportunidades de negócios num ciclo virtuoso. A Daslu parecia concentrar todos esses atributos, por mais que seus detratores a apontassem como um ícone da ostentação e da futilidade – que, aliás, estão entre os direitos garantidos a qualquer cidadão numa democracia. A aura de esplendor e sucesso que a loja emanava começou a ser maculada em 13 de julho de 2005, quando Eliana passou dez horas na cadeia, em São Paulo. A prisão foi o primeiro desdobramento visível, com direito a holofotes, da Operação Narciso, deflagrada em conjunto pelo Ministério Público, Polícia e Receita Federal para desbaratar as fraudes promovidas pela empresa.

Fotos Leo Feltran
LUXO E OSTENTAÇÃO
Nas fotos, detalhes da Villa Daslu, a sede da butique. A construção ocupa 20 000 metros quadrados, onde convivem 333 marcas nacionais e internacionais, como Chanel, Prada e Louis Vuitton. Há uma champanheria, um restaurante e um espaço para festas

Na quinta-feira da semana passada, quase quatro anos depois, Eliana viu-se outra vez diante do braço armado da lei. Às 6 horas da manhã, três policiais federais bateram à porta de sua casa, no elegante bairro do Morumbi, com uma ordem de prisão nas mãos. Atordoada, mas calma, Eliana acordou os filhos, Bernardino, o Dinho, de 23 anos, e Marcella, de 17: "Não quero ver nenhum dos dois chorando nem se desesperando", avisou. Em seguida, telefonou para sua advogada, Joyce Roysen, e com a ajuda de Marcella preparou uma mala com mudas de roupa (que não tiveram utilidade; ela vestiu o uniforme da cadeia, camiseta e calça bege), artigos de higiene, Bíblia, caneta e bloco de anotações "para ter o que fazer lá" e uma bolsa térmica com seus medicamentos. Demorou cerca de cinquenta minutos para se aprontar. Ainda conversou rapidamente com a cunhada Silvia, mulher de Antônio Carlos, que correu para a casa dela logo após levarem seu marido. Pronta, Eliana entrou no carro da polícia, sem algemas, foi conduzida ao Instituto Médico-Legal para exame de corpo de delito e, de lá, para a Penitenciária Feminina do Carandiru. Lá dentro, a poderosa Eliana, dona da internacionalmente conhecida Daslu, preparou-se para passar sua primeira – e até agora única – noite na cadeia.

A sentença de Eliana era esperada, e a ordem de prisão sempre foi uma possibilidade. Daí, provavelmente, a aparente tranquilidade com que ela rea-giu, sobretudo diante de seu estado de saúde. Eliana descobriu em 2006 que tinha câncer de pulmão. Tratou-se, perdeu o cabelo e estava bem até novembro passado, quando começou a sentir fortes dores nas costas. Em janeiro, o diagnóstico: o câncer de pulmão está inativo, mas há metástase ativa na coluna lombossacral. O tumor é dos mais agressivos, e Eliana terá de fazer quimioterapia a cada três semanas por tempo indeterminado – a mais recente foi no sábado 21. "Jantei com ela no domingo, e estava muito cansada e abatida", conta uma amiga. "Mas continuava trabalhando, principalmente em casa, porque não acha posição para sentar." Quem convive com Eliana diz que ela se mostra otimista, acredita na cura e comemora o fato de os novos medicamentos usados no tratamento não resultarem em queda de cabelo, como na primeira vez. Seu médico, Sérgio Simon, divulgou um comunicado em que alertava para o estado de saúde delicado da sua cliente e recomendava que ela cumprisse prisão domiciliar, para poder ser atendida a contento. Segundo ele, "a paciente tem alto risco de infecção generalizada", necessita diariamente de "aplicação subcutânea de medicação e controle de exames de sangue" e ainda pode sofrer "crises de hipertensão e sangramento". Na manhã da prisão, a injeção que Eliana precisa tomar todos os dias foi aplicada por seu ex-marido, o cardiologista Bernardino Tranchesi, quando ela ainda se encontrava no IML. Na sexta-feira, um enfermeiro do serviço domiciliar contratado por ela teve autorização para aplicar a injeção na cadeia e uma equipe de um dos melhores laboratórios de São Paulo pôde ir ao Carandiru colher sangue para exame.

Beto Barata/AE

O INÍCIO DE TUDO
Eliana (à esq.) e Antônio Carlos (à dir.) na saída da primeira prisão, em 2005

Como nesta fase da sentença não há recurso a prisão especial, Eliana ficou num espaço juntamente com outras detentas. Numa entrevista ao repórter Thiago Bronzatto, ela contou que "as pessoas aqui são muito humanas, solidárias, desprovidas de qualquer preconceito". "Chamei duas companheiras de cela e fizemos orações por muito tempo", acrescentou. Mas Eliana dormiu sozinha numa cela de 9 metros quadrados, onde às 21h30 de quinta-feira foi instalado um colchão especial recomendado pelo médico. Também recebeu frutas, livros, lençóis e toalhas. Na sexta-feira, almoçou a comida da prisão (arroz, feijão e frango). Na mesma entrevista, ela manifestou seu "inconformismo pela injustiça que estou vivendo e pela desproporção da pena". "Tenho a sensação de que o tempo parou enquanto a vida corre lá fora", comparou. E anunciou seu primeiro projeto em liberdade: "A evangelização em favelas onde o tráfico é intenso".

Na Daslu, com o mais recente imbróglio envolvendo seus donos, o movimento caiu na mesma proporção em que aumentaram as conversas em voz baixa entre funcionários. Desde janeiro, Dinho, formado em administração de empresas, é apresentado como o novo responsável pelo dia a dia da loja. Quem vem tocando os negócios, no entanto, é Donata Meirelles, diretora da Daslu e amicíssima de longa data de Eliana. Os números oficiais da empresa mostram que, depois do baque da Operação Narciso, em julho de 2005, o faturamento anual da Daslu despencou de 240 milhões para 160 milhões de reais em 2006, quando os produtos importados sumiram de suas prateleiras. A Daslu começou a reagir no ano seguinte e floresceu no ano passado, em parte pela abertura de uma segunda loja, no Shopping Cidade Jardim. Com a incorporadora que é dona do shopping, a JHSF, Eliana tinha planos de abrir mais uma série de lojas, inclusive em outras cidades. Paralelamente, em fevereiro do ano passado, ela cedeu à empresa de gerenciamento de shoppings BR Malls a administração de todos os cerca de setenta espaços independentes existentes dentro da sua loja (Dior, Rolex e Louis Vuitton, entre outros). Pelo acordo, 80% da receita de aluguéis e serviços ficou com a BR Malls e 20% com a Daslu. Permaneceram sob o controle de Eliana e seu irmão os espaços da marca Daslu e de algumas grifes importadas. Ainda não era como nos áureos tempos pré-julho de 2005, quando a Daslu era vista como fenômeno de sucesso no mercado de luxo e aparecia com destaque em reportagens das revistas americanas Vanity Fair e New Yorker. Mas era quase: neste último ano, Eliana recebeu no Brasil o estilista americano Tom Ford em maio e circulou com o amigo Valentino, ícone da moda italiana, no Rio Summer, em novembro. Com a crise econômica mundial, a Daslu sentiu o baque. Sua condenação não ajuda o caixa.

Bebeto Mattews/AP
DOIS MUNDOS
Daslu: de destaque na imprensa internacional à possibilidade de que sua dona tenha destino semelhante ao da bilionária americana Martha Stewart – a cadeia

A sentença da juíza federal Maria Isabel do Prado, da 2ª Vara Criminal de Guarulhos, tem 478 páginas e detalha o funcionamento do esquema criminoso montado pela empresária, por seu irmão e outros cinco homens de confiança, que atuavam nas importadoras usadas pela Daslu para trazer produtos subfaturados do exterior. Segundo a juíza, os crimes repetiam sempre o mesmo padrão. Eliana escolhia as peças de grifes internacionais que queria comprar. Seu irmão era o responsável por selecionar as empresas de fachada que usaria para trazer os produtos para o Brasil, sem declarar que estavam destinados à Daslu. As importadoras escolhidas tinham em seu comando pessoas ligadas à loja. Rodrigo Nardy Figueiredo, dono da Todos os Santos, por exemplo, é filho de uma assessora de Eliana. Já a Multimport, em nome de Celso de Lima, ex-contador da Daslu, tinha 96% do seu faturamento vinculado à loja e sempre registrava prejuízo. As grifes internacionais emitiam, no momento da exportação, uma nota fiscal verdadeira, em nome da Daslu ou da importadora. No Brasil, essa fatura era substituída por outra, falsificada, em nome da importadora e com um valor muito menor que o de mercado. O documento falso era, então, apresentado na alfândega do Aeroporto de Cumbica para que, sobre ele, fossem calculados impostos de importação mais baixos. Dessa forma, uma calça da grife Marc Jacobs comprada por 150 dólares era declarada às autoridades brasileiras como se tivesse custado apenas 20 dólares. Esse procedimento rendeu aos sete envolvidos condenações pelos crimes de formação de quadrilha, descaminho (importação fraudulenta de produto lícito) e falsidade ideológica (por fazer constar nas faturas que a compradora das mercadorias era a importadora e não a butique).

A pena de quase um século de prisão, apesar de inusitada, não é absurda na matemática jurídica. Como os crimes foram cometidos ao longo de anos, a juíza considerou cada um deles independente e, portanto, merecedor de uma pena individual. Os sete anos por descaminho, por exemplo, foram multiplicados por seis, o número de delitos desse tipo constatado pela investigação. Uma agravante foi que, mesmo após terem sido processados, em 2005, os donos da Daslu continuaram com a fraude. A Receita Federal de Santa Catarina descobriu em janeiro do ano seguinte que a butique cometeu o mesmo crime de importação fraudulenta no Aeroporto de Navegantes, deixando de pagar 330 000 reais em impostos. O esquema da Daslu tinha um único objetivo: não recolher tributos. Os processos administrativos pela sonegação ainda estão em andamento nas Receitas Federal e Estadual, mas já foi constatado um prejuízo de mais de 600 milhões de reais ao Erário. O procurador Magnani diz que o valor pode chegar a 1 bilhão de reais. Terminada a investigação, o Ministério Público pode denunciar os envolvidos por mais um crime: o de sonegação fiscal. Ou seja, a pena final pode ser ainda maior. A condenação da semana passada refere-se apenas aos métodos usados pelos réus para sonegar.

Alvaro Teixeira
AMIGOS ESTILISTAS
Eliana com Valentino, em festa no Rio, e, com Donata Meirelles, recebendo Tom Ford em São Paulo

A advogada Joyce deverá contestar, no Tribunal Regional Federal (TRF), a maneira de calcular a duração e de estipular o regime da pena. Caso perca também o recurso no TRF, ela ainda poderá apelar ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal. Até o último julgamento no STF, o processo pode levar dez anos para ser concluído – e, mesmo que a punição de mais de 94 anos seja mantida, depois de dezesseis anos cumpridos em regime fechado (um sexto da pena), Eliana seria beneficiada com a progressão da pena para o regime semiaberto. Em geral, no entanto, as instâncias superiores costumam diminuir bastante as punições estabelecidas pelos juízes de primeiro grau e até anulá-las. Se o julgamento dos sócios da Daslu seguir essa lógica, o que num primeiro momento parecia um exagero poderá ficar com cara de impunidade. E Eliana não teria nem mesmo um momento Martha Stewart: dona de uma marca bilionária de produtos para casa, apresentadora de um celebrado programa de TV, a americana foi presa em 2004 por obstrução da Justiça num processo que apurava o uso de informação privilegiada na negociação de ações de uma empresa de biotecnologia cujo dono era seu amigo. Passou cinco meses na cadeia e saiu com tornozeleira de controle, que usou durante meses.

Com reportagem de Juliana Linhares e Raquel Salgado






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