Entrevista:O Estado inteligente

sábado, março 21, 2009

Estados Unidos Os bônus milionários aos executivos da AIG

Imoral, sim. Mas ilegal?

Bônus pagos aos executivos da AIG provocam
clamor popular. Mas eles estão de acordo com
a tradição americana de respeito aos contratos


Benedito Sverberi

Fotos Susan Walsh/AP e Jim Young/Reuters

PEGOU MAL
O presidente da AIG, Edward Liddy (à esq.), enfrenta protestos durante audiência no Congresso; diante da ira popular, Obama pediu ao secretário do Tesouro, Tim Geithner (à dir.), que bloqueasse o pagamento dos bônus



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Em 2008, os americanos descobriram que parte da exuberância financeira exibida por sua economia na última década era de fato irracional. Depositava-se em uma mentira criada pela falta de regulação adequada, pela irresponsabilidade de Wall Street e pelo estelionato puro e simples perpetrado por um punhado de escroques – sendo o maior deles o investidor Bernard Madoff, que há pouco admitiu, candidamente, ter roubado 65 bilhões de dólares de seus clientes. Não bastasse a indignação inicial produzida por essas revelações, descobre-se agora que a seguradora americana AIG, então à beira da falência, pagou 165 milhões de dólares em bônus a um grupo de executivos neste mês, com a crise em seus momentos mais dramáticos, poucas semanas após a empresa ter recebido uma boia de salvação de 180 bilhões de dólares de dinheiro público. Enquanto as famílias americanas viam no bolso o gosto amargo do desastre financeiro, premiaram-se os diretores da empresa que produziu o maior prejuízo trimestral da história corporativa americana – um desastre equivalente a 465 000 dólares evaporados por minuto. Pior: a unidade contemplada da AIG foi justamente sua divisão financeira, aquela que transformou a saudável seguradora quase num cassino.

A notícia despertou a ira dos americanos. Debaixo de protestos, o novo presidente da AIG foi chamado às pressas ao Congresso. Edward Liddy limitou-se a afirmar que não havia outra saída legal a não ser efetuar os pagamentos, prometidos contratualmente. Os americanos só se sentiriam minimamente vingados na quinta-feira passada, quando a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei para recuperar, por vias transversas, a quase totalidade dos bônus pagos. O ponto central da medida foi a instituição de um tributo de 90% sobre esses prêmios. A taxa incidirá não só sobre a AIG, mas também sobre qualquer empresa que tenha recebido, desde 1º de janeiro, mais de 5 bilhões de dólares em ajuda federal. Caberá ao Senado opinar sobre a questão.

Ao contrário do que parece, não se trata de uma decisão simples – ao menos para as civilizações acostumadas ao império das leis. Ao longo da história americana, o respeito aos contratos, um dos pilares básicos do capitalismo nos Estados Unidos, sobreviveu a episódios ainda mais constrangedores do que o oferecido pelo pagamento dos bônus da AIG. O primeiro julgamento da Suprema Corte a confirmar o respeito sagrado aos contratos deu-se em 1810, no caso Fletcher versus Peck. A discussão girava em torno da validação de títulos de propriedade de terras obtidas de forma fraudulenta dos índios e com a comprovada corrupção de deputados do estado da Geórgia que, por meio de uma lei estadual, haviam autorizado inicialmente o loteamento. O caso chegou à Suprema Corte por um comprador de terras que, motivado pelo preço excessivo que pagou a um intermediário, pretendia anular o contrato de aquisição. Ele alegou a origem obscura do negócio e a corrupção dos deputados, da qual só soube depois. Como ele, muitas outras pessoas haviam protestado, em um clamor popular que obrigou o estado da Geórgia a anular todos os contratos de compra e venda. A Suprema Corte, em Washington, julgou se a lei de um estado poderia anular acordos privados. A decisão final, tomada pelo juiz John Marshall, baseou-se no argumento de que, a despeito da podridão do episódio, as partes agiram de boa-fé, dentro da formalidade. E que, portanto, o governo da Geórgia não poderia ter violado a santidade dos contratos. Ou seja, a venda foi um ato espontâneo, de cumprimento obrigatório. Outras decisões da Suprema Corte também protegeram acertos privados. Em todos esses casos, o princípio da santidade dos contratos prevaleceu sobre o clamor popular. Resta saber se algum executivo da AIG terá a coragem de contestar na Justiça a interferência do governo americano no pagamento dos bônus. E se o clamor popular terá eco na Suprema Corte dos Estados Unidos.

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