Bônus pagos aos executivos da AIG provocam
clamor popular. Mas eles estão de acordo com
a tradição americana de respeito aos contratos
Benedito Sverberi
Fotos Susan Walsh/AP e Jim Young/Reuters |
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Em 2008, os americanos descobriram que parte da exuberância financeira exibida por sua economia na última década era de fato irracional. Depositava-se em uma mentira criada pela falta de regulação adequada, pela irresponsabilidade de Wall Street e pelo estelionato puro e simples perpetrado por um punhado de escroques – sendo o maior deles o investidor Bernard Madoff, que há pouco admitiu, candidamente, ter roubado 65 bilhões de dólares de seus clientes. Não bastasse a indignação inicial produzida por essas revelações, descobre-se agora que a seguradora americana AIG, então à beira da falência, pagou 165 milhões de dólares em bônus a um grupo de executivos neste mês, com a crise em seus momentos mais dramáticos, poucas semanas após a empresa ter recebido uma boia de salvação de 180 bilhões de dólares de dinheiro público. Enquanto as famílias americanas viam no bolso o gosto amargo do desastre financeiro, premiaram-se os diretores da empresa que produziu o maior prejuízo trimestral da história corporativa americana – um desastre equivalente a 465 000 dólares evaporados por minuto. Pior: a unidade contemplada da AIG foi justamente sua divisão financeira, aquela que transformou a saudável seguradora quase num cassino.
A notícia despertou a ira dos americanos. Debaixo de protestos, o novo presidente da AIG foi chamado às pressas ao Congresso. Edward Liddy limitou-se a afirmar que não havia outra saída legal a não ser efetuar os pagamentos, prometidos contratualmente. Os americanos só se sentiriam minimamente vingados na quinta-feira passada, quando a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei para recuperar, por vias transversas, a quase totalidade dos bônus pagos. O ponto central da medida foi a instituição de um tributo de 90% sobre esses prêmios. A taxa incidirá não só sobre a AIG, mas também sobre qualquer empresa que tenha recebido, desde 1º de janeiro, mais de 5 bilhões de dólares em ajuda federal. Caberá ao Senado opinar sobre a questão.
Ao contrário do que parece, não se trata de uma decisão simples – ao menos para as civilizações acostumadas ao império das leis. Ao longo da história americana, o respeito aos contratos, um dos pilares básicos do capitalismo nos Estados Unidos, sobreviveu a episódios ainda mais constrangedores do que o oferecido pelo pagamento dos bônus da AIG. O primeiro julgamento da Suprema Corte a confirmar o respeito sagrado aos contratos deu-se em 1810, no caso Fletcher versus Peck. A discussão girava em torno da validação de títulos de propriedade de terras obtidas de forma fraudulenta dos índios e com a comprovada corrupção de deputados do estado da Geórgia que, por meio de uma lei estadual, haviam autorizado inicialmente o loteamento. O caso chegou à Suprema Corte por um comprador de terras que, motivado pelo preço excessivo que pagou a um intermediário, pretendia anular o contrato de aquisição. Ele alegou a origem obscura do negócio e a corrupção dos deputados, da qual só soube depois. Como ele, muitas outras pessoas haviam protestado, em um clamor popular que obrigou o estado da Geórgia a anular todos os contratos de compra e venda. A Suprema Corte, em Washington, julgou se a lei de um estado poderia anular acordos privados. A decisão final, tomada pelo juiz John Marshall, baseou-se no argumento de que, a despeito da podridão do episódio, as partes agiram de boa-fé, dentro da formalidade. E que, portanto, o governo da Geórgia não poderia ter violado a santidade dos contratos. Ou seja, a venda foi um ato espontâneo, de cumprimento obrigatório. Outras decisões da Suprema Corte também protegeram acertos privados. Em todos esses casos, o princípio da santidade dos contratos prevaleceu sobre o clamor popular. Resta saber se algum executivo da AIG terá a coragem de contestar na Justiça a interferência do governo americano no pagamento dos bônus. E se o clamor popular terá eco na Suprema Corte dos Estados Unidos.