Entrevista:O Estado inteligente

domingo, março 29, 2009

O trilhão da salvação

Mais 1 trilhão de dólares

Governo americano apresenta o seu antídoto para
anular o veneno que contamina o sistema financeiro

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O governo dos Estados Unidos anunciou, na semana passada, sua disposição de despejar na economia ainda mais dinheiro público. Timothy Geithner, secretário do Tesouro, detalhou o seu plano de saneamento do sistema financeiro americano e informou que será usado até 1 trilhão de dólares, bancados pelos contribuintes, para extrair os ativos podres que contaminam os balanços financeiros dos bancos e os impossibilitam de exercer a sua atividade básica, que é emprestar dinheiro e dinamizar a atividade econômica. A esperança é que finalmente se consiga dar um fim aos derivativos tóxicos que ainda impedem as finanças dos Estados Unidos de retornar aos trilhos. Pela reação dos investidores, há chances reais de o programa representar o início do fim da crise: as bolsas encerraram a semana em alta, e boa parte das ações já acumula ganhos neste ano. Economistas do mundo acadêmico, no entanto, ainda continuam céticos e acreditam que há uma série de mazelas que precisam ser sanadas antes que a economia se recupere plenamente.

O fato de um resgate no montante de 1 trilhão de dólares não ser, talvez, suficiente para recuperar o sistema financeiro dá a dimensão do tamanho do enrosco dos americanos. Essa montanha de dinheiro é similar, por exemplo, ao total gasto pelos Estados Unidos nas guerras da Coreia e do Vietnã, com os valores já corrigidos pela inflação. Para distribuir essa quantia em cédulas, seriam necessários 10 bilhões de notas de 100 dólares, com um peso total de 10 000 toneladas. Mas esse novo trilhão é apenas mais um somado a outros tantos já despejados desde o fim de 2007, depois do estouro da bolha financeira. No total, a operação anticrise do governo americano já atinge 10 trilhões de dólares, na forma de injeção de capital nos bancos, resgate de empresas falidas, garantias e projetos de investimento em infraestrutura. Nas próximas semanas, quando o antídoto para o veneno dos bancos começar a ser aplicado, será possível saber se a medicação bastará ou se haverá a necessidade de um tratamento ainda mais extremo.

Pablo Martinez Monsivais/AP

CUSTO POLÍTICO
Geithner (à esq.) e o presidente do Federal Reserve, Ben Bernanke (ao centro), no Congresso: explicações para os 180 bilhões de dólares usados para salvar a AIG

O novo pacote de saneamento financeiro foi desenhado para estimular os investidores privados a comprar os ativos problemáticos dos bancos – em geral, toda uma papelada emitida tendo como lastro títulos hipotecários que agora viraram pó. O governo entrará com altos subsídios e dará garantias aos compradores, sem o que ninguém estaria disposto a participar desse negócio. O Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC), ou órgão federal de seguro aos depósitos, vai leiloar carteiras que contenham esses ativos considerados tóxicos. Ganhará quem fizer as maiores ofertas. O vencedor de cada leilão entrará num fundo de investimento público-privado, em parceira com o Tesouro. A gestão da carteira, contudo, será feita pelo setor privado, sob a supervisão do FDIC. Se tudo der certo, no futuro os investidores e o Tesouro vão recuperar, com ganhos, o total investido hoje. Mas há, obviamente, o risco substancial de as aplicações virarem grandes micos.

Para o estrategista-chefe do Banco WestLB, Roberto Padovani, o pacote é "o melhor que poderia ter sido feito dadas as atuais restrições dos Estados Unidos". Segundo Padovani, a medida afasta a ideia de nacionalizar o sistema financeiro, o que seria muito complicado, custoso e ineficiente. "E também acalma um pouco o clima político, pois é mesmo difícil explicar à população a necessidade de usar recursos públicos para ajudar um banco." O economista-chefe da consultoria MB Associados, Sérgio Vale, também apoia a participação privada, mas alerta para um risco ligado à execução do pacote. "De forma geral, a estratégia está na direção certa. Só temo pela dificuldade de colocar o programa em pé e fazê-lo funcionar quanto antes. Do jeito que foi montado, pode ser que demore a surtir efeito", afirmou Vale. Professores ame-ricanos ouvidos pelo correspondente de VEJA em Nova York, André Petry, também mostraram descrença com a eficiência do plano (veja o quadro). Na avaliação do economista de Harvard Bruce Scott, por exemplo, ainda há dois desafios essenciais: "O primeiro é o contínuo achatamento dos preços do mercado imobiliário, o que segue piorando o balanço dos bancos, expondo-os a ativos crescentemente tóxicos. O segundo problema é a alavancagem excessiva do sistema financeiro, praticamente o triplo do que se verificava até 1980".

Mark Wilson/Getty Images/AFP

FÁBRICA DE DINHEIRO
O governo dos Estados Unidos ampliou a emissão de moeda para combater a recessão

Ainda que nos Estados Unidos os valores sejam mais expressivos, outros países também tiveram de abrir seus cofres para combater a crise. A ação conjunta das maiores economias do mundo já atinge, ao menos, 12 trilhões de dólares. Parece uma quantidade absurda de dinheiro, mas significa um quarto da riqueza que evaporou com o estouro da bolha. Um estudo do economista Claudio Loser para o Banco Asiático de Desenvolvimento estimou em 50 trilhões de dólares o tamanho da desvalorização dos ativos financeiros. A ação dos governos tem o objetivo justamente de compensar, ao menos em parte, o desaparecimento dessa riqueza. Do contrário, a contração na atividade econômica global seria ainda mais severa. Trata-se, portanto, de uma maneira de atenuar o doloroso processo de ajuste pelo qual o mundo terá de passar por causa de três décadas de excessos.

O ponto inicial desse porre financeiro sem precedentes pode ser estabelecido no dia 15 de agosto de 1971, quando o presidente americano Richard Nixon decidiu, unilateralmente, que não mais seguiria as regras do padrão-ouro estabelecidas na Conferência de Bretton Woods (1944). Surgia ali a moeda fiduciária, sem valor intrínseco, baseada apenas na confiança depositada nela. Foi o primeiro passo da dissociação entre a economia real e o planeta finanças (veja o quadro). Para o filósofo Roberto Romano, da Unicamp, o mundo viu acontecer algo alertado pelos pensadores desde a Grécia Antiga: a irracionalidade e os excessos que derivam de uma relação distorcida com o dinheiro, contaminada pelas paixões humanas. Segundo o professor, quando isso acontece, o conselho da filosofia é que se invoque rapidamente a razão para controlar os exageros: "Platão afirma que o relacionamento da alma com as paixões tem de ser despótico". Se a história serve de alento, bolhas sempre são seguidas de pânicos financeiros e crise, mas cedo ou tarde o mundo das finanças recobra sua racionalidade.

A avaliação dos efeitos do trilhão

A maioria destes economistas ouvidos pelo correspondente
André Petry em Nova York acha que ainda é cedo para
ver luz no fim do túnel

Matteo Bazzi/EPA/Corbis
"Ainda temos muitos bancos insolventes. Deveriam ter deixado a AIG ir à falência, com o que teríamos uma reestruturação ordeira e mais rápida do setor financeiro."
Edward Prescott
, professor de economia da Universidade Estadual do Arizona e Nobel de 2004
Divulgação
"É difícil avaliar o estágio atual da crise financeira, porque existem fragilidades fundamentais. A proposta do governo Obama pode ajudar de modo considerável, mas não é compatível com a escala do problema como um todo. A alavancagem excessiva continua sendo um tremendo perigo."
Bruce Scott, professor de economia da Universidade Harvard
Divulgação
"Receio que a crise esteja apenas no seu estágio inicial. O grande temor é que muitos bancos se revelem uma AIG – ou seja, que se tornem sugadores de ajuda oficial para não falir. Estamos no primeiro estágio de um longo processo de recuperação."
Charles Geisst
, professor de história financeira do Manhattan College
Tim Shaffer/Reuters
"Minha expectativa é que o setor financeiro se recupere rapidamente. Mas a economia real não melhora de uma hora para outra. Estamos no começo do fim do problema bancário, mas ainda no fim do começo da crise como um todo."
Eric Maskin
, professor de economia política da Universidade Princeton e Nobel de 2007
Guenter Schiffmann/Bloomberg News/Landoz
"A história nos ensina que, depois de voltarem a andar com as próprias pernas, os bancos ainda levarão em torno de um ano para oferecer crédito na praça."
Barry Eichengreen
, professor de economia e ciência política da Universidade da Califórnia, em Berkeley

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